Esperteza animal na íntegra

Reinaldo José Lopes

Já devo ter lido quatro ou cinco livros do primatologista holandês-americano Frans de Waal até hoje e por enquanto nunca me arrependi – o sujeito sabe escrever, além de dominar sua área como poucos. Tive o prazer de resenhar o mais recente deles, com o nada sucinto título “Are We Smart Enough To Know How Smart Animals Are?” (“Será que somos inteligentes o suficiente para saber quão inteligentes os animais são?”, em tradução livre), para a Folha neste sábado. Como ando cada vez mais prolixo pra escrever (acho que é o que acontece com o cara quando ele se põe a escrever um ou dois livros todo santo ano…), minha insigne chefinha Mariana Versolato precisou cortar o texto (desculpe escrever tanto, chefia!). Por isso, ei-lo abaixo na íntegra. Espero que gostem.

Ah, e um rápido aviso para os fãs do behaviorismo (criticado por De Waal em seu livro): é claro que a perspectiva dele é parcial, e o fato de eu ter me divertido com as piadas do autor sobre o tema não significa que eu endosso a opinião dele, OK?

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Durante décadas, os gibões, coitados, levaram a fama de “piores alunos da turma” entre os grandes macacos. Enquanto chimpanzés e orangotangos se mostravam capazes de todo tipo de proeza usando instrumentos simples, como varetas e cordas, os gibões simplesmente pareciam não captar o conceito de empregar um objeto como extensão de suas mãos. Conclusão: são bichos meio burros, certo?

Acontece que, ao contrário dos chimpanzés, os gibões quase nunca descem da copa das árvores. Seus braços longos e delgados funcionam como pernas às avessas, propelindo-os velozmente, dependurados, de galho em galho. Portanto, deixar um objeto no chão da jaula seria o mesmo que torná-lo inacessível para esses macacos, percebeu o primatólogo americano Benjamin Beck. Bastou que os instrumentos fossem colocados mais para cima, no nível dos ombros dos gibões, para que eles aprendessem a usá-los com tanta destreza quanto a de seus primos.

Histórias como a da queda e ascensão dos gibões povoam as páginas do mais recente livro do primatologista holandês-americano Frans de Waal, da Universidade Emory (EUA). O título da obra é comprido, mas pelo menos tem a virtude de resumir bem o conteúdo: “Are We Smart Enough To Know How Smart Animals Are?” (“Será que somos inteligentes o suficiente para saber quão inteligentes os animais são?”, em tradução livre). E, para facilitar a vida do leitor, De Waal dá uma “resposta curta” à pergunta logo nas primeiras páginas: “Sim, mas nem parece, a julgar pelos tropeços dos cientistas do século passado”.

DESIGN E HISTÓRIA

No fundo, portanto, trata-se de um livro sobre o que os pesquisadores costumam chamar de “design experimental” – vale dizer, a maneira como você projeta os detalhes de um experimento antes de realizá-lo, tomando o máximo de cuidado para que suas conclusões não acabem sendo falsas ou incompletas justamente por conta de erros de projeto no experimento. E também é um livro sobre a história das pesquisas sobre a inteligência animal, uma área que passou por avanços vertiginosos nas últimas décadas, não sem que acontecessem alguns tropeços constrangedores pelo caminho.

Dito desse jeito, parece algo não muito emocionante – história da ciência e debates sobre detalhes de experimentos podem soar como papo para iniciados –, mas De Waal consegue demonstrar que, no fundo, o que está em jogo são visões conflitantes sobre a relação entre a nossa espécie e os outros animais. E poucas coisas são capazes de causar tamanho fascínio (ou pavor, dependendo da perspectiva) quanto notar as possíveis semelhanças entre “nós” e “eles”.
Simplificando bastante um debate cheio de idas e vindas que durou séculos, as tais visões conflitantes são, de um lado, a que enxerga animais não humanos como meras “máquinas de sobrevivência”, robôs instintivos sem vida interior nenhuma, e a que propõe que as diferenças entre bichos e gente são muito mais de grau do que de essência – ou seja, capacidades como o raciocínio, a empatia e a autoconsciência também estariam presentes entre eles, ainda que de forma menos complexa.

Essas dicotomias são a deixa para que De Waal se divirta (e, de passagem, divirta também o leitor) dando alguns sopapos conceituais no chamado behaviorismo radical, uma perspectiva teórica segundo a qual seria inútil levar em conta a vida interior (emoções, intenções etc.) dos bichos (e dos humanos) para tentar entender seu comportamento.

Para os behavioristas radicais, as únicas coisas relevantes para o comportamento animal seriam os estímulos e as recompensas trazidas pelo ambiente (um bicho aprende a realizar determinada tarefa desde que seja recompensado com comida por seu treinador, por exemplo). Dá para analisar como a criatura se comporta, mas jamais dizer que ela “está gostando”, “está com medo” e por aí vai. A aplicação dessas ideias ao comportamento das pessoas deu origem a uma piada sobre o que o behaviorista diz para sua parceira depois do sexo: “Claramente foi bom para você. E para mim, foi bom?”.

CADA UM É CADA UM

O caso dos gibões é um dos exemplos de que essa visão radical está errada. Quando a perspectiva evolucionista é adicionada à equação – ou seja, a de que cada criatura do planeta evoluiu para se adaptar a condições ambientais e sociais específicas –, fica claro que não existe uma única modalidade de inteligência ou flexibilidade comportamental, mas inúmeras, que moldam, por sua vez, o que determinado bicho é capaz de aprender ou pensar (não é heresia usar esse verbo em muitos casos).

Considere os elefantes, paquidermes de cérebro avantajado e comportamento complexo que pareciam incapazes de passar no “teste do espelho” – ou seja, o de reconhecer sua imagem refletida, como fazem os grandes macacos. Ocorre que os primeiros espelhos usados nesses testes eram pequenos e ficavam no nível das patas dos elefantes. Quando passaram a empregar espelhos “de corpo inteiro”, os animais subitamente entenderam a lógica da coisa.

O truque crucial por trás desses e de outros avanços parece ter sido a combinação cuidadosa de empatia – a capacidade de se colocar na pele do bicho em questão – e imaginação. Parece um excelente treino para quando encontrarmos uma inteligência extraterrena, mas também ajuda a demonstrar que inteligências não humanas existem aos montes, para quem tem olhos para ver.

“ARE WE SMART ENOUGH TO KNOW HOW SMART ANIMALS ARE?”
AUTOR Frans de Waal
EDITORA W.W. Norton & Company
QUANTO R$ 32,19 (livro eletrônico); 352 págs.
AVALIAÇÃO muito bom

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