O futuro do genoma
Qual foi a descoberta recente mais revolucionária no que diz respeito à compreensão do genoma humano e de outros seres vivos? E, em tempos de Crispr-Cas9 – o empolgante método de edição de DNA que tem facilitado o trabalho da engenharia genética mundo afora, inclusive nos laboratórios do Brasil –, será que existem limites intrínsecos para o que a gente pode fazer em termos de manipulação do genoma? Como todos os genes são meio pau para toda obra, realizando diversas funções diferentes no organismo, mexer em muitos deles não causaria uma pane severa inevitavelmente?
Resolvi fazer essas duas perguntas para um timaço de geneticistas brasileiros e agora trago as respostas para você, intrépido leitor. Comecemos pelas damas, é claro. Confira.
Maria Cátira Bortolini, UFRGS
Sim, hoje temos essa limitação [em relação ao que se pode manipular no genoma]. Devido às intricadas redes funcionais, fica complicado imaginar que poderemos mexer no genoma e conseguir vislumbrar todas as consequências em termos de modificações nos fenótipos [características observáveis dos seres vivos].
A evolução levou bilhões de anos para chegarmos à maquinaria ajustada que encontramos no mundo vivo. Bilhões de anos! E sabe-se lá quantos eventos de tentativas mal sucedidas, erros, extinções e sucessos ocorreram durante esss bilhões de anos!
Porém, à medida que as metodologias sofisticadas, que envolvem inclusive inteligência artificial, evoluem, acho que, no futuro, todas as limitações que ora identificamos poderão ser superadas.
Obviamente aparecerão outras, mas aquelas que identificamos hoje serão superadas.
Tábita Hünemeier, USP
Existem vários aspectos que, ao menos com base no que sabemos neste momento, limitam nossa capacidade de editar o genoma. Os aspectos desenvolvimentais que tu citaste são importantes, com sua expressão temporal e espacial, além de splicing alternativo diferencial [um mesmo gene dando origem a diferentes proteínas] e mesmo expressão preferencial de um alelo [variante de um gene] em determinado tecido. Mas acho que os fatores epigenéticos [impactos do ambiente sobre a ativação dos genes] são os mais limitantes, por serem mais difíceis de controlar e manipular.
Essa ideia de manipulação ilimitada considera o genoma como algo isolado e autossuficiente, desconsiderando completamente as propriedades emergentes que são inerentes à complexidade biológica, e não são tão facilmente dedutíveis ou previsíveis. São tantos fatores e processos envolvidos na formação de um carácter complexo que, para alterá-lo, seria necessário o conhecimento total de todas as interações entre esses fatores e processos. Pode ser possível em teoria, mas não facilmente executável.
Sandro Luis Bonatto, PUC-RS
Uma resposta simples: não acho que haja limite técnico para o que se possa fazer, dado tempo e recursos suficientes (e vontade).
É como a evolução biológica na terra: o enorme tempo e quantidades de experimentações envolvidas possibilitou que de moléculas simples surgisse vida complexa e finalmente inteligente, tudo com baixíssima probabilidade em (relativamente) pouco tempo e com poucos “experimentos”. Na verdade, talvez nem precisemos dessa analogia. Basta ver o que se sabia (ou se conseguia manipular) há 50 ou 100 anos atrás e extrapolarmos para o mesmo tempo no futuro.
Agora, se (ou o quanto) “devemos” fazer é outra questão completamente…
Sérgio Danilo Pena, UFMG
A descoberta relacionada a DNA que mais balançou (positivamente!) minha cabeça foi a incrível evolução da metodologia do sequenciamento de DNA. As técnicas da genômica de nova geração são pelo menos 50 mil vezes mais velozes do que a metodologia usada no projeto genoma humano, que terminou há apenas 14 anos atrás (parece um século!). Hoje eu sou capaz de sequenciar todo o genoma de um paciente para diagnosticar sua doença, a um preço que se aproxima de uma ressonância nuclear magnética e com uma rapidez que permite inclusive estudar doentes no UTI e ter resultados a tempo de ainda contribuir para a sua cura. Graças ao sequenciamento de nova geração a genômica invadiu a clínica e vai revolucioná-la completamente!
Eduardo Eizirik, PUC-RS
Bom, é uma área de fronteira, então o que podemos fazer neste momento é especular, diante do conhecimento disponível agora. Realmente as redes regulatórias conectando um grande número de genes e outros elementos genômicos são muito complexas. Ainda estamos bem longe de compreender a maior parte delas em sua totalidade, o que seria um pré-requisito para manipulá-las de forma completa.
Mas, em princípio, acho que não haveria um limite teórico. Se soubéssemos exatamente o que cada base do nosso genoma faz, em todos os tipos de situação (inclusive variações ambientais possíveis), em todos os tecidos, em todas as fases do desenvolvimento, seria possível em teoria manipulá-la, modificando a sua ação, de forma previsível. E se ela interagisse com mil outras bases em uma dada situação, de uma forma previsível (talvez esse seja o maior desafio aqui), poderíamos manipular a todas de maneira coordenada, gerando um efeito geral no organismo.
Então acho que o limite não é teórico, mas prático. Podem realmente haver combinações específicas de mudanças no genoma que geram problemas regulatórios insolúveis, levando à inviabilidade do indivíduo, doenças etc. Mas é possível que posteriormente se descubram outras combinações (inclusive que não ocorram na natureza), sem o mesmo efeito deletério, e que gerem o efeito funcional esperado. Mas realmente, manipular sistemas tão complexos, controlando todas as variáveis, seria algo muito além da capacidade técnica atual.
Talvez a frase “a gente vai conseguir manipular à vontade” seja o ponto. O “à vontade” talvez não ocorra, mas existem muitas maneiras de se alterar sistemas biológicos (vide o que a evolução fez ao longo de bilhões de anos), que são extremamente complexos, mas também flexíveis e redundantes em vários aspectos. Então, em teoria, é possível direcionar mudanças através de múltiplas alterações coordenadas.
Isso, claro, sem falar dos aspectos éticos. Estou falando apenas da questão técnica de se é possível atingir um nível altamente sofisticado de manipulação. As discussões éticas disso são profundas, tanto no que tange a mudanças em humanos como em outros organismos.
Fabrício Santos, UFMG
Essa é fácil de opinar porque pensamos muito a respeito disso para sugerir o tema do Congresso Brasileiro de Genética de 2017, que será sobre regiões codificadoras e não codificadoras.
Acho que a descoberta mais reveladora da genômica dos últimos 15 anos foi demonstrar que as funções no DNA vão muito além dos genes proteicos ou de RNA… que podem explicar mecanismos regulatórios, fenótipos complexos e outras características hereditárias que até hoje não conseguimos mapear em genes proteicos.
A própria natureza humana, nossa consciência e intelecto, deve estar muito mais além das proteínas e genes que conhecemos hoje… dissecaram cérebros humanos e de outros primatas, fizeram inúmeros estudos fisiológicos e bioquímicos e nenhuma explicação convincente existe para esse diferencial do que é ser humano frente à biodiversidade. Na verdade, é uma pergunta até difícil de fazer, pois cada vez mais que estudamos, é menor a diferença entre ser humano e ser chimpanzé…
Com certeza para responder isso ainda falta compreender bem a relação genótipo (DNA) e fenótipos (produtos, funções) associados ao desenvolvimento, diferenciação celular, organização dos tecidos e órgãos etc.
Então acho que o maior potencial transformador será atribuir funções a essas regiões do DNA, principalmente as não-codificadoras (que não produzem proteínas). Com certeza, filosoficamente, dá um nó em muitas ideias deterministas que divulgavam por aí, principalmente até início dos anos 1990.
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