Por dentro da fábrica de sangue

Reinaldo José Lopes

Não faz muito tempo, escrevi nesta Folha sobre um avanço muito interessante e importante na área biotecnológica: uma técnica que permitiu a obtenção, em laboratório, de células-tronco do sangue, o que abre a possibilidade de facilitar a vida de quem precisa de transplantes de medula óssea para doenças sanguíneas num futuro não tão distante, ou até mesmo acabaria com a busca por doadores de sangue.

Um dos autores da pesquisa é o brasileiro Edroaldo Lummertz da Rocha, atualmente pós-doutorando na Universidade Harvard. Confiram abaixo, na íntegra, a entrevista que fiz com o pesquisador, na qual ele detalha sua participação no estudo.

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1)Primeiro, por favor me conte qual foi exatamente a sua participação no trabalho. Vi pelo seu currículo que você tem graduação em ciência da computação, então fiquei muito curioso pra saber como você embarcou nessa área!

Eu trabalho com biologia computacional, desenvolvendo métodos computacionais e estatísticos para análise de dados multidimensionais complexos. Neste trabalho, eu realizei as análises moleculares que demonstraram que, em termos de genes com papel conhecido em hematopoiese [o desenvolvimento dos diferentes tipos de células do sangue], as células-tronco hematopoiéticas derivadas a partir de células pluripotentes criadas em nosso trabalho são similares às células-tronco hematopoiéticas do cordão umbilical humano (utilizadas como controle). No entanto, globalmente, tais células ainda são substancialmente distintas das células-tronco hematopoiéticas do cordão umbilical, as quais, assim como as células da medula óssea, são atualmente utilizadas para o tratamento de diversas doenças, tais como leucemias, diversas formas de anemias e também doenças autoimunes. Portanto, muito trabalho ainda é necessário para criar, em laboratório, células capazes de desempenhar funções similares às células-tronco hematopoiéticas da medula óssea e do cordão umbilical.

2)Um detalhe técnico que eu queria entender melhor: por que a aplicação de doxiciclina, que é um antibiótico, é necessária pra ativar os genes que foram inseridos nas células para que elas adquirissem características de células-tronco hematopoiéticas?

O uso de doxiciclina permite controlar a expressão dos transgenes, possibilitando que, na presença de doxiciclina, os transgenes sejam expressos [ativados] e que, na ausência dela, os transgenes deixem de ser expressos. Tal estratégia permite controlar o perfil temporal de expressão dos transgenes e ajuda a estabelecer se a expressão dos mesmos, in vivo [no organismo vivo], é absolutamente necessária ou não. Neste estudo, nós demonstramos que os transgenes são necessários para a especificação, in vivo, das células-tronco e progenitoras hematopoiéticas derivadas de células pluripotentes.

3)Por que o pessoal insiste em dizer que está “muitíssimo perto” em relação à obtenção de células-tronco hematopoiéticas? A impressão é que vocês já chegaram lá, na verdade — fora, claro, o problema de evitar o uso da modificação genética com vírus etc. A questão é que a eficiência ainda é muito baixa?

Eu acredito que estejamos próximos, inclusive de versões do protocolo experimental sem modificações genéticas. Porém, células-tronco hematopoiéticas são extremamente raras e difíceis de estudar dada a natureza retrospectiva destes experimentos. Além disso, o tempo necessário para derivar estas células é relativamente longo e a eficiência é baixa, dificultando potenciais aplicações clínicas. Por exemplo, de acordo com os nossos cálculos, somente 1 em 10.093 células criadas em laboratório teriam as propriedades funcionais necessárias para reconstituir um sistema hematopoiético completo e funcional [capaz de dar origem a todos os componentes do sangue humano]. Por outro lado, em células-tronco hematopoiéticas do cordão umbilical, 1 em 3.068 células teriam as propriedades desejadas.

4)Conte, por favor, o que você está fazendo no seu pós-doc.

Eu trabalho na interface entre biologia computacional e engenharia celular, desenvolvendo modelos computacionais e estatísticos para compreender quais mecanismos moleculares são responsáveis por mediar transições entre tipos celulares, tais como a derivação de células-tronco hematopoiéticas a partir de células pluripotentes descrita neste estudo. Eu então utilizo esse conhecimento para desenvolver terapias celulares potencialmente mais eficientes. No momento, venho trabalhando em novas estratégias para derivar células-tronco hematopoiéticas a partir de células pluripotentes, assim como a derivação de células com uso potencial em imunoterapias. O tempo dirá se vamos ser bem-sucedidos ou não em nossa busca constante para desenvolver novos tratamentos e melhorar a qualidade de vida.

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