Os deuses de Asterix e cia.
Nas primeiras semanas de julho deve chegar às bancas e às livrarias virtuais o novo livro deste escriba, “Mitologia Nórdica: As Origens Perdidas de Game of Thrones, Senhor dos Anéis e Cia.”, pela editora Abril, selo Superinteressante. Trata-se de um grande guia dos mitos nórdicos e celtas e de sua influência sobre as obras de fantasia modernas. Enquanto o lançamento não chega, queria compartilhar com vocês um trecho do capítulo sobre os mitos celtas que acabou não entrando no livro por falta de espaço. Nele, conto o pouquinho que sabemos sobre os deuses dos povos celtas durante a época anterior ao Império Romano e durante a dominação romana na Gália e na Bretanha (atuais França e Reino Unido, grosso modo). Confiram!
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Quem já leu ao menos alguma aventura de Asterix e Obelix deve ter ouvido a dupla de amigos berrar frases como “Por Tutatis!” ou “Por Belenos!” nas mais diferentes situações. Bem, essas duas figuras de fato eram veneradas por populações de fala céltica, a julgar pelo que dizem os textos de autores da época romana, certos artefatos (como anéis encontrados no atual Reino Unido) e algumas inscrições.
Tutatis ou Teutates (as duas formas são possíveis) parece ter sido um deus guerreiro protetor da tribo (o nome dele, ao que tudo indica, deriva da raiz teuta-, que significa algo como “povo”, “tribo” ou mesmo “etnia”), e às vezes os escritores romanos o identificam com Marte, o deus da guerra e grande protetor da própria Roma. Há inscrições que fazem referência a ele em lugares tão distintos quanto a atual Inglaterra, a Áustria e a própria Roma.
Já Belenos, um deus aparentemente muito popular, era adorado por grupos do norte da Itália, da Grã-Bretanha, da atual França e até da Espanha. O sujeito parece ter sido uma divindade solar, com aspecto belo e resplandecente, e era associado a elementos como cavalos e, veja você, rodas (o que talvez implique que os celtas o imaginavam de um jeito parecido com o retrato greco-romano de Apolo, levando o Sol pelos céus todos os dias numa carruagem brilhante).
Os dados que expus acima significam que Tutatis e Belenos eram membros importantes do “Olimpo celta”? Até onde sabemos, não é o caso, e isso nos leva a outro ponto importante a respeito do pouco que sabemos sobre as figuras mitológicas celtas da Idade do Ferro e do período romano: a extrema “descentralização”, digamos. As inscrições dessa época fazem referência a mais de 300 deuses diferentes, que parecem ter tido influência basicamente local (podem ter havido, por exemplo, vários Tutatis ou “protetores da tribo”, cada um com atribuições próprias, dependendo da região).
Essa diversidade enorme faz sentido quando a gente leva em consideração que não havia quase nenhuma unidade política e cultural no mundo celta e, portanto, pouco estímulo para que um pequeno grupo de divindades se transformasse num panteão de “deuses nacionais”.
Apesar disso, dá pra esboçar alguns padrões relativamente amplos a respeito da mitologia e da religião celta desse período. Já falamos um pouquinho dos deuses guerreiros e solares. Entre os deuses do sexo masculino que também parecem ter sido populares em diversas regiões podemos citar um sujeito chamado Succellos, representado carregando um martelo e associado à agricultura e à fabricação de vinho (uma mistura de Thor com Dioniso, talvez?).
Por falar em Thor, os celtas tinham um deus do trovão chamado Taranis, representado segurando um raio e, tal como Belenos, uma roda (e, de fato, em galês moderno as palavras taranu/taran significam “trovejar”). Em exotismo, porém, nenhum deus celta desse período supera o sujeito conhecido como Ogmios. Segundo o escritor de língua grega Luciano de Samósata (125-180 d.C.), Ogmios era representado com correntes que saíam de sua língua e se prendiam aos ouvidos das pessoas que o escutavam falar, para simbolizar sua tremenda eloquência e poder persuasivo. A antiga escrita alfabética da Irlanda, conhecida como Ogham, foi batizada em homenagem a esse deus, que claramente tinha uma versão irlandesa, com o nome de Ogma.
Finalmente, vale a pena mencionar a figura do Deus Chifrudo – no bom sentido, é claro. Inscrições e obras de arte como o famoso caldeirão de Gundestrup (encontrado na Dinamarca, mas provavelmente fabricado em regiões dominadas por grupos celtas) frequentemente colocam em posição de destaque um deus adornado com um torque (como já vimos, esse “colar aberto” era uma das marcas de distinção dos membros da elite céltica) e com chifres ou galhadas de cervo na cabeça, cercado de animais, inclusive uma serpente também chifruda (só que com chifres de carneiro). Com base no texto restaurado de uma inscrição, esse deus é conhecido como Cernunnos, literalmente “o Cornudo”, embora divindades com esses atributos possam ter recebido os mais variados nomes Europa afora.
Os estereótipos modernos sobre as culturas célticas (que aparecem em romances como As Brumas de Avalon, em filmes de Hollywood sobre o rei Arthur ou na obra de cantoras pop de “música celta”) costumam retratar esses povos como “feministas” se comparados a outras civilizações antigas. Trata-se de um exagero e de uma distorção dos dados históricos e arqueológicos, mas não se pode negar, por outro lado, a importância das figuras divinas do sexo feminino na Idade do Ferro celta.
Um elemento aparentemente central, nesse caso, é a associação entre diversas deusas e os principais rios da Europa Ocidental e das ilhas Britânicas. Uma dessas deusas aquáticas, conhecida como Danu, teria emprestado seu nome a bacias hidrográficas tão importantes quanto a do Danúbio, que corta boa parte do território europeu, e a do Ródano, na atual França, além de ter batizado o principal panteão da Irlanda, como veremos. Pequenos santuários dedicados a deusas desse tipo também são comuns em fontes e lagos – e, provavelmente não por acaso, alguns dos principais achados arqueológicos de “objetos de prestígio” do mundo celta, como armas e escudos lindamente decorados, vieram desses locais aquáticos, talvez porque esses objetos fossem lançados às águas como oferendas para tais deusas.
É um clichê, eu sei, mas não dá para fugir dele: essas deidades femininas costumam ser associadas à fertilidade. Duas com nomes especialmente fofos são Rosmerta e Nantosuelta (essa última seria consorte do nosso amigo Succellos), mas também é bastante comum que elas sejam retratadas como tríades de deusas (a simbologia religiosa celta adorava o número três), algo que reaparece nas narrativas irlandesas. Dá para imaginar que a união entre a divindade feminina e seu consorte do sexo masculino era vista como símbolo da união entre um rei/chefe tribal e o próprio território da tribo, de forma que a virilidade do rei garantia de forma mística a fertilidade da terra (um exemplo do hierôs gamos ou casamento sagrado que mencionei na introdução deste livro).
Mas não se deve imaginar que essa potência divina ligada à mulher fosse algo apenas passivo. Uma das deusas celtas mais populares desse período era Epona, a Senhora dos Cavalos (o nome dela vem da mesma raiz indo-europeia que deu origem à palavra equino em português: essas trocas do p pelo q às vezes aconteciam nas línguas célticas). Retratada no lombo de uma égua e/ou acompanhada por um potro e outros cavalos, Epona se tornou uma das divindades patronas da cavalaria dos exércitos romanos e ganhou até uma festa oficial no calendário religioso de Roma (18 de dezembro).
Já falamos de rios sagrados e de trindades de deuses. Outros dois elementos da mitologia céltica primitiva que merecem ser mencionados são bem curiosos: a obsessão com cabeças e com caldeirões mágicos. Pois é – até onde sabemos, havia o hábito de preservar as cabeças cortadas de inimigos valorosos, ou talvez até de ancestrais, nos pequenos templos celtas, e os mitos que chegaram até nós abordam as supostas propriedades mágicas de tais cabeças decepadas de heróis (é o caso da história galesa conhecida como Branwen, Filha de Llyr, que você terá a oportunidade de conhecer neste capítulo).
Nesse mesmo mito galês e nas imagens do caldeirão de Gundestrup temos o estranho conceito da panelona que é capaz de reviver guerreiros mortos colocados lá dentro (pois é, estou falando do desenho de um caldeirão mágico feito no metal de um caldeirão de verdade – esses celtas eram uns fanfarrões mesmo). Há quem acredite que histórias sobre esse tipo de recipiente sejam uma das fontes da popularidade das narrativas sobre o Santo Graal, o cálice onde teria sido recolhido o sangue de Cristo, nos territórios célticos durante a Idade Média (a ideia é que, assim como o caldeirão, o Graal também era capaz de conferir a vida eterna – ao menos do ponto de vista espiritual – aos que fossem dignos dele).
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