Algoritmo ‘gay’: coragem e polêmica

Reinaldo José Lopes

A internet, como talvez vocês saibam, andou em polvorosa por causa de um estudo realizado na Universidade Stanford que mostrou que é possível usar inteligência artificial para diferenciar rostos de homossexuais e heterossexuais (tanto homens quanto mulheres) com razoável grau de precisão. Tentei analisar as repercussões do estudo em reportagem desta semana na Folha.

Para o texto que linkei acima, tive o privilégio de contar com as opiniões de três feras da psicologia evolucionista, o ramo de pesquisa que tenta entender como a trajetória evolutiva de nossa espécie moldou a mente e o comportamento humano. Eles praticamente escreveram alentados ensaios em resposta aos meus pedidos de entrevista, e seria uma pena não aproveitar os textos deles em sua inteireza. Portanto, vou publicá-los por aqui ao longo dos próximos dias.

Nosso primeiro texto é de autoria de Marco Antonio Correa Varella, que faz pós-doutorado em genética comportamental e psicoetologia no Instituto de Psicologia da USP. É contigo, Marco!

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“Li os comentários e o estudo e confesso que a primeira impressão que tive antes de ler foi realmente de ser um estudo muito perigoso, quase impublicável. Entretanto, após ver o cuidado metodológico dos autores (que fizeram 5 estudos em 1 e os submeteram ao processo de ‘peer-review’ ou revisão por pares) e também o cuidado e a preocupação ética que demonstraram (levantando a bola sobre uma vulnerabilidade real da invasão da privacidade a ser considerada e regulada, como já fizeram com as antigas ‘curtidas’ públicas do Facebook), fiquei favoravelmente impressionado.

Trata-se, então de um estudo muito importante tanto cientificamente, por testar e corroborar a teoria de hormônios pré-natais que prediz a atipicalidade sexual morfológica e psicológica nos homossexuais [ou seja, que a aparência deles é influenciada pelos hormônios em doses diferentes que recebem na barriga da mãe], quanto eticamente, por alertar sobre a possibilidade real do uso danoso de tecnologias amplamente existentes para promover segregação e criminalização. Se o uso danoso não for controlado, prevejo uma corrida a cirurgias plásticas em países onde a homossexualidade ainda é criminalizada, da mesma forma que as cirurgias de reconstrução de hímen já são realidade em países muçulmanos.

No Brasil, em tempos de aumento do conservadorismo na política, no Judiciário, do cancelamento de exposições e peças teatrais, da volta da discussão descabida sobre a ‘cura gay’, esse estudo é crucial para que tanto a comunidade LGBT quanto aqueles muitos héteros atípicos que cairiam no falso positivo dessa técnica e sofreriam as mesmas consequências saibam da vulnerabilidade e incluam em sua agenda formas de regular o uso de tais ferramentas de redes neurais [como as usadas na pesquisa].

Claro que o estudo nos faz pensar erroneamente que os ‘tipos’ hétero e homo são claramente distintos, caindo num essencialismo simplista, mas existe todo um contínuo entre um extremo e outro, passando por bissexuais e até assexuais. E, claro, existem subtipos de homossexuais que são mais típicos de seu sexo que os héteros, bem como muitos héteros atípicos para seu sexo, o que confunde mais as coisas.

Esse estudo não é uma ameaça para uma pessoa brasileira que seja homossexual e ainda não saiu do armário, porque o método de identificação não é 100%, tem margem de erro, porque não levou em conta as diferentes misturas étnicas dos brasileiros, porque não levou em conta que a presença de maquiagem ou barba pode dificultar a identificação por distorcer ou ocultar aspectos importantes da face.

Admiro os autores por terem tido a coragem de publicar o resultado e de lidar com toda essa enxurrada de críticas infundadas e ameaças de morte baseadas num entendimento errôneo de seus objetivos.

E claro, citando Gilberto Gil, ‘Queremos saber o que vão fazer com as novas invenções. (…) Pois se foi permitido ao homem tantas coisas conhecer, é melhor que todos saibam o que pode acontecer’.”