Algoritmo gay: o lado positivo da controvérsia
Estamos de volta com a discussão sobre os aspectos biológicos e éticos do programa de computador capaz de diferenciar entre rostos de pessoas homossexuais e heterossexuais (para saber mais sobre o debate, confira esta reportagem e este post anterior).
Desta vez, tenho a honra de publicar neste espaço as ponderadas observações de uma tcheca de coração brasileiro – literalmente. Jaroslava “Jarka” Varella Valentova é professora do Instituto de Psicologia da USP e mulher do nosso entrevistado anterior sobre o mesmo tema, o brasileiro Marco Antonio Correa Varella. Os dois se conheceram em congressos internacionais de sua área de atuação como pesquisadores, a psicologia evolucionista.
A conversa com a Jarka trouxe uma perspectiva interessantíssima sobre a questão – e inclusive uma proposta de uso “positivo” da tecnologia. Confira as impressões dela abaixo.
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“Marco já mencionou vários pontos importantes sobre o estudo, então o meu ‘feedback’ será mais curto.
Também tenho de destacar que, depois de ver títulos sensacionalistas de alguns jornais e comentários de leigos sobre o estudo, achei que era algo muito mais complicado do que é na verdade. Bastou ver o nome da revista onde o estudo foi publicado (uma das melhores na área de psicologia), a universidade dos autores (Stanford) e o fato de que foi aprovado pelo comitê de ética para que a minha opinião mudasse um pouco.
O estudo mostra que a fisiologia e o ‘grooming’ facial [ou seja, coisas como se barbear, o uso de maquiagem etc.) diferem entre pessoas heterossexuais e homossexuais, e especialmente que um programa baseado em rede complexa de neurônios [virtuais] pode aprender essas diferenças com maior sucesso do que a percepção humana.
Nenhum desses resultados é completamente novo – já sabemos que indivíduos com diferentes orientações sexuais têm outras diferenças, morfológicas, comportamentais, psicológicas. As diferenças são geralmente pequenas, como as diferenças entre homens e mulheres. E já sabemos que a inteligência artificial consegue resolver várias tarefas com maior sucesso do que os humanos. O que pode parecer problemático é a mistura dessas duas linhas – fazer um programa artificial que conseguiria distinguir pessoas segundo a orientação sexual com uma precisão grande.
Por um lado, isso pode ter consequências muito negativas, como os autores do artigo também mencionam – em países onde homossexualidade ainda é vista como algo negativo ou até criminoso (em alguns países com a consequência de pena de morte), esse tipo de programa poderia ser usado para coordenar um genocídio de homossexuais.
É importante destacar que isso acontece mesmo sem programa nenhum. Os seres humanos sempre acham algum jeito de identificar os “inimigos” – os judeus podem ser um dos exemplos mais tristes na história humana, outro exemplo podem ser as “bruxas” no período medieval na Europa, e temos vários outros. Então, sim, identificação de orientação sexual sem o consentimento da pessoa é problemático mesmo em países mais liberais porque simplesmente interfere na privacidade.
Por outro lado, o estudo trabalhou com fotografias de pessoas reais colocadas voluntariamente nas redes sociais, já com a própria descrição de orientação sexual (eles buscam parceiros ou do mesmo sexo ou do sexo oposto). Isso mostra que o lugar onde o estudo foi feito é um lugar aberto às variações sexuais. Isso já é maravilhoso, porque sabemos que várias orientações sexuais fazem parte integral e saudável da sexualidade humana, e não tem por que esconder a própria sexualidade. A esperança é que isso possa acontecer em todos os países, que as pessoas não tenham mais medo ou sejam forçadas a mudar sua orientação sexual para aquilo que é aceito por todos.
Em vez de pensar em abusos potenciais do estudo (em vários casos há abusos potenciais sobre os quais geralmente nem os autores chegaram a pensar), podemos pensar também no lado positivo.
Imaginem um paciente sexológico com problemas com ereção/lubrificação/excitação geral durante atividades sexuais com um parceiro. Em vários casos esse problema não é nada fisiológico, mas relacionado ao sexo do parceiro – as pessoas não sabem que são homossexuais e têm problemas com atividades sexuais com pessoas do sexo oposto.
O papel do terapeuta nesse caso é preparar o cliente para o autoconhecimento da própria orientação sexual, e não receitar medicação para aumentar a excitação sexual. Mas como o terapeuta pode saber que a pessoa é homossexual? Ou um terapeuta muito bem treinado para conseguir distinguir indivíduos de orientações sexuais diferentes conseguiria isso, ou um programa eletrônico pode ajudar com essa tarefa.
Um dos exemplos de uso de pesquisas que focam em características faciais normalmente não perceptíveis seria o Facial Action Coding System (FACS) desenvolvido por pesquisadores famosos na área de expressões faciais. Eles não desenvolveram nenhum programa artificial para atribuição de expressões faciais, mas desenvolveram técnicas e treinamentos para as pessoas serem capazes de perceber e analisar expressões faciais de outros.
Isso pode ser usado e abusado em outras pesquisas. Recentemente, esse sistema deles tem sido usado por empresas no mundo inteiro – por exemplo, no trabalho criminológico, para analisar expressões faciais de pessoas que podem ter cometido um crime. Assim, o treinamento de percepção de características faciais normalmente não detectáveis pode ajudar enormemente na vigilância de aeroportos e outros locais públicos. Mas, claro, essa análise feita por especialistas treinados pode ser entendida como invasão da privacidade das pessoas.
Para mim, o estudo (aliás, estudos) foi muito bem feito, e os autores pensaram bastante sobre os abusos possíveis. Eu tenho quase certeza que eles não vão vender esse programa para países onde a homossexualidade é um crime e não vão apoiar nenhuma discriminação com base na orientação sexual. É muito importante que eles tenham mostrado que é possível desenvolver esse programa e que qualquer governo pode pagar para que uma empresa desenvolva um programa semelhante. A ameaça não vem do lado dos pesquisadores. O meu estudo que eles citam também foi bastante criticado e até odiado, uma vez que a cobertura da mídia na época simplificou e distorceu a pesquisa.”