Algoritmo gay: a responsabilidade da ciência
Estamos de volta com o último post de nossa série sobre a polêmica do sistema de inteligência artificial que promete distinguir entre rostos de héteros e gays (para saber mais sobre o rolo, confira esta reportagem e a opinião de dois especialistas neste post e neste outro aqui).
Desta vez, as considerações são da grande dama da psicologia evolucionista brasileira, Maria Emilia Yamamoto, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Antes de ler o texto dela, porém, se você estiver interessado numa perspectiva diferente, vinda de uma cientista da computação, recomendo o interessante vídeo da colega Camila Laranjeira, do canal Peixe Babel, do Science Vlogs Brasil. Tá aqui embaixo.
Fiquem agora com o texto da professora Maria Emilia.
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“Vários dos pontos que eu havia levantado foram cobertos por Marco e Jarka. Vou reiterar alguns pontos e comentar outros poucos.
Acredito que não há dúvida de que esse é um trabalho sério e bem fundamentado cientificamente e que o instrumento que eles desenvolveram é tão acurado quanto um instrumento desse tipo pode ser. Há alguns problemas, porém:
1)A ciência e seus produtos são baseados em probabilidades, portanto, como os próprios autores destacam, o algoritmo indica a probabilidade que um indivíduo tenha uma orientação sexual. Como qualquer probabilidade, ela pode estar certa (na maior parte dos casos, se ela for alta) ou errada (em alguns poucos casos).
O que é preciso lembrar é que, se a probabilidade de estar errado se concretiza para um indivíduo, isso representa 100% para esse indivíduo; em outras palavras, um erro monumental. Daí o perigo de esse instrumento ser usado por não cientistas, ou até por cientistas desavisados.
2)Os autores destacam a teoria hormonal pré-natal como a que fornece a mais forte evidência para seus resultados. Eu tendo a concordar, pois hormônios de fato podem alterar as feições faciais. Porém (eu li o ‘paper’ muito rapidamente e posso estar fazendo afirmações que não correspondem exatamente ao que os autores dizem) as conclusões parecem apontar para um único tipo de homossexual, o homo masculino que foi pouco exposto a testosterona e a feminina que foi exposta a muita testosterona.
Há muitos outros tipos (e Jarka pode discorrer sobre isso com muito mais propriedade do que eu), o que inclui mais um fator de erro. Só para lembrar, um artigo já um pouco antigo mostrou que filhos com mais de um irmão mais velho tinham maior probabilidade de serem homossexuais por terem sido expostos no período pré-natal a muita testosterona, e que eles teriam feições bastante masculinas. Qual a proporção dos diferentes tipos? Certamente isso afeta a precisão do algoritmo.
3)Finalmente, o aspecto ético. Quando eu era estudante de graduação discutíamos muito a questão da responsabilidade social da ciência. Aparentemente, essa discussão está fora de moda. Mesmo naquela época, ninguém defendia que o cientista teria de parar de fazer ciência, mas temos de voltar a discutir como utilizar instrumentos como esses que podem ter um tremendo impacto sobre a vida das pessoas.
Dizer que o instrumento não será disponibilizado a não ser em algumas circunstâncias e locais nos quais não haja danos para os possíveis envolvidos é balela! Certamente haverá acesso e reprodução de forma não autorizada, ou até mesmo a replicação da construção do algoritmo usando os parâmetros citados no artigo. Acho que é o momento de voltar a discutir o papel social da ciência e dos cientistas.”