A treta do Guia Politicamente Incorreto

Reinaldo José Lopes

Como vocês talvez tenham visto, estreou no final de semana que passou, no canal History, a série de TV “Guia Politicamente Incorreto”, baseado no livro homônimo do jornalista Leandro Narloch sobre história do Brasil. Fui entrevistado pela produção da série, apareci bastante no primeiro episódio – mas não gostei do resultado. Explico o porquê no vídeo abaixo ou, se você prefere ler a história, no post por escrito a seguir.

 

Vamos ponto por ponto:

1)Não entrei nessa enganado. Alguns autores best-sellers e respeitados sobre história do Brasil, como Lira Neto e Laurentino Gomes, contaram em suas redes sociais que a produção da série não teria informado de que se tratava, de que havia a ligação com o livro do Narloch (que divide muito as opiniões no ramo, no mínimo) etc. No meu caso, por outro lado, pelo menos, houve essa transparência.

Assim que a produção chegou ao escritório aqui de casa, a gente conversou um pouco sobre o livro do Narloch. Quando ele saiu originalmente, tive até uma pequena treta com o autor porque achei que ele pisou na bola ao fazer sua análise sobre o Brasil pré-cabralino e a fase do contato inicial com os europeus (você pode conferir aqui o texto que escrevi na época pro meu blog antigo, o “Chapéu, Chicote e Carbono-14”).

O pessoal da produção me disse que a ideia não era simplesmente reproduzir o livro do Narloch, mas usá-lo como ponto de partida para a discussão de pontos polêmicos e interessantes da história do país, que múltiplas vozes seriam ouvidas. “Bom, beleza, acho que pode ser legal”, pensei. Inclusive mandei meu livro ainda não publicado pra produção dar uma olhada e tentar mostrar esse outro lado. E assim gravamos – isso faz tempo, em dezembro do ano passado.

2)A edição ficou muito unilateral. Meu grande problema nesse primeiro episódio é que, apesar dessa promessa de pluralidade, quase não teve dissonância ou complexidade na história contada. As falas dos entrevistados, em especial no caso do que se fala sobre os indígenas, o Brasil anterior a Cabral e o contato inicial com os portugueses, viram meio que um grande martelão pra bater sempre na mesma tecla. Não adianta muito o Eduardo Bueno falar que os índios “também são humanos” se quase todas as demais falas acabam pintando os caras como vilões destruidores do ambiente – eles não eram santos, mas nem por isso eram vilões. As coisas ficaram sem nuance nenhuma, e isso é bem ruim, a meu ver.

3)Neandertais e sapiens sem família? Esse é o grande erro factual do episódio: não sei por que cargas d’água vieram com a ideia de que o casamento e a família só surgiram mais ou menos na época da origem da agricultura com o Homo sapiens. Isso é só um especulol doido, na verdade, mas não faz muito sentido imaginar que no Paleolítico nós e outros hominídeos não vivêssemos em núcleos familiares também, justamente por causa da criação dos filhos, que é muito trabalhosa na nossa linhagem.

4)Extinção da megafauna: acabou sobrando pras minhas declarações, em grande parte, o papel de contar como era a fauna de mamíferos da Era do Gelo aqui (cavalos, ursos, mastodontes, preguiças-gigantes etc.) e o possível papel da ação humana na extinção desses bichos.

Até aí beleza, só que faltou deixar claro – eu não lembro se expliquei isso na época, mas se não expliquei dava pra descobrir googlando – que temos POUCA EVIDÊNCIA da ação direta humana nessa extinção NO TERRITÓRIO BRASILEIRO. Pode muito bem ser que esses bichos fossem relativamente pouco caçados e que a mudança do clima também tenha tido um papel considerável no sumiço deles. Era muito importante ter essa visão balanceada, que não foi mostrada. Se não falei desse lado também, faço aqui meu mea culpa – deveria ter falado.

5)Agricultura “destrutiva” dos índios: de novo, faltou relativizar e nuançar as coisas. Muita gente – inclusive gente que eu respeito, como o Tiago Cordeiro e o Pedro Dória – bateu demais na tecla de como a agricultura indígena era seminômade, esgotava rapidamente o potencial do solo, usava demais o fogo etc. etc.

Isso é parcialmente verdade. Talvez valesse no caso dos grupos tupis do litoral encontrados nos primeiros anos de contato com os europeus. Só que:

a)Existe uma discussão grande e importante sobre esse negócio da derrubada e queima em massa da mata antes de 1500, porque dava muito trabalho derrubar árvore grande com machado de pedra; pode muito bem ser que o manejo agrícola tenha ganhado essa cara justamente graças aos machados de metal vindos da Europa;

b)A gente tem uma TONELADA de evidências arqueológicas de que muitos grupos na Amazônia, na região Sul e em outros lugares não eram nômades, mas sedentários que habitavam mais ou menos a mesma região por séculos, o que vai totalmente contra essa ideia de esgotar o solo rapidinho e partir pra outra em poucos anos. A gente tem a terra preta da Amazônia, um solo pré-colonial criado pra ser fértil e que, pasmem, até hoje é fértil. Isso precisava ter sido contado;

c)Essas práticas agrícolas certamente podem ter afetado bastante a área original de mata, mas ao mesmo tempo elas usavam uma base grande e diversificada de espécies nativas em sistemas agroflorestais. Era mata moldada pelo homem, mas ainda era mata bastante biodiversa, em muitos locais.

6)Índio é tudo uma coisa só? Pra mim outra grande mancada foi apresentar todos os indígenas na época do contato como se fossem o estereótipo dos tupis seminômades, como já falei. O problema é que tinha MIL FUCKING LÍNGUAS sendo faladas só no território brasileiro na época do contato.

Então, qual era “o índio” de 1500? Podia ser um tupi guerreiro antropofágico, mas podia ser também um grande canoeiro e construtor de mega-aldeias do Xingu, podia ser um grande chefe caingangue do planalto gaúcho que construía grandes monumentos funerários de terra no alto de colinas, podia ser um construtor de “Stonehenges” (sim, tinha isso, no Amapá). Será que não tinha mesmo como falar dessa diversidade?

7)Índio vendedor de papagaio: esse ponto vai parecer meio picuinha, mas acho importante registrar porque ele está no cerne de um dos defeitos do livro do Narloch, que é o seguinte: ele adora uma evidência anedótica – ou seja, “causos”, histórias individuais sobre uma situação específica. Causos são legais, mas quando a gente está falando de história, é preciso deixar muito claro se eles são representativos ou não.

O Narloch, ao ser entrevistado, fala de índios que vendem papagaios ou outras espécies silvestres como exemplo da suposta falta de preocupação ambiental “dos índios” (de novo, quais?) hoje. Beleza, muita gente fala de situações assim, deve ser mesmo comum. Agora, qual a proporção do tráfico ilegal de animais no Brasil que vem dessas fontes? Silêncio sepulcral – sem quantificar e contextualizar, isso vira palavras ao vento.

Agora, uma coisa está muito bem quantificada (e não com base em evidência anedótica): no presente – vejam bem, no presente – há uma correlação FORTE entre redução do desmatamento e das queimadas e a presença de reservas indígenas. Tais reservas conseguem inibir fortemente essas fontes de empobrecimento de ecossistemas. Tá aqui um trabalho de pesquisa clássico que mostra isso.

De novo, claramente faltou mencionar isso. Aliás, no mínimo, o Evaristo de Miranda, da Embrapa, entrevistado no episódio, deveria ter citado esse dado quando citou supostas imagens de satélite mostrando que o fogo usado por indígenas é que faz o cerrado aumentar em detrimento da floresta no interior do Brasil.

Daria pra continuar indefinidamente, mas o resumo da ópera é o seguinte: legal fazer uma série descontraída, divertida, derrubando mitos. Mas dá pra fazer isso enxergando nuances e complexidade, e não criando uma história unilateral.

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