Como o Islã se tornou a fé dominante no Oriente Médio
Conforme era de se esperar, meu último post/vídeo, que foi uma crítica ao conteúdo do episódio 1 da série “Brasil: A Última Cruzada”, produzida pelo grupo Brasil Paralelo, despertou reações fortes, em especial por parte dos discípulos do pensador Olavo de Carvalho e do próprio Olavo. Pessoal meio esquentado, né? 😛
Tretas podem ser divertidas, mas eu sou jornalista de ciência, então meu negócio é discutir evidências concretas, independentemente de orientações político-ideológicas e das brigas comezinhas delas derivadas. Aproveito então para fazer minha tréplica aos comentários de Carvalho em sua página do Facebook neste novo vídeo. Confira. Pra quem está interessado em fontes históricas primárias: há um excelente apanhado delas nos livros “The Inheritance of Rome”, de Chris Wickham, e “The Rise of Western Christendom”, de Peter Brown – reli parte deles para preparar o post e o vídeo.
Como de costume, pra quem prefere ler, eis um resumo dos argumentos por escrito (editei um pouco os comentários de Carvalho porque, afinal, este é um blog de família).
Diz Carvalho em seu comentário na rede social:
“É ÓBVIO que eu não quis dizer que o Império distribuía cidadanias como chicletes. Está subentendido que as dava a quem fosse a Roma solicitá-las, não a qualquer zé-mané.”
E o que ele disse textualmente no documentário?
“Notem que nem os romanos fizeram tanta devastação quanto os muçulmanos. Os romanos, quando invadiam um país, imediatamente, transformavam todo mundo em cidadão.”
Pode ser que a grande mente do conservadorismo brasileiro fale uma língua diferente do português, o que aliás é um direito que lhe assiste. Entretanto, em português corrente, a expressão “imediatamente transformavam todo mundo em cidadão” quer dizer ou “está subentendido” algo como “dava a quem fosse a Roma solicitá-las”? Sério?
Mestre Olavo, o senhor estava participando de um documentário que se propõe a ensinar a versão mais correta da história do Brasil desde suas origens portuguesas. Não dá para supor que as pessoas terão contato telepático com a sua sapiência e entenderão A quando o cavalheiro diz B. E o B dito pelo senhor está, desculpe, errado.
Mas, fazendo aqui um ato de caridade hermenêutica e supondo que o que ele disse quereria mesmo dizer o Império Romano “dava cidadania a quem fosse solicitá-la em Roma”, isso está correto? Não. Mil perdões, mas está errado de novo. A cidadania romana plena (bem como suas diferentes gradações) era um importante instrumento de cooptação política das elites locais do Império – e, como tal, era judiciosamente utilizado.
MIGUELANDO A CIDADANIA
Altos potentados das províncias, algumas antigas cidades-Estado com relações especialmente boas com o governo central, soldados não romanos que cumpriam todo o seu tempo de serviço no Exército, colonos romanos que fundavam cidades em províncias e seus descendentes – esse pessoal ganhava cidadania romana. Os demais, não, mesmo que tivessem dinheiro e tempo para subir num navio e ir até as margens do Tibre requisitar direitos políticos. (Tudo isso, claro, até todos os homens livres do império receberem a cidadania romana por obra e graça do imperador Caracala em 212 d.C.)
Fora isso, tem outro fator aí, que Carvalho, como bom cristão, deveria recordar: o culto imperial. De Augusto em diante, só os judeus estavam isentos da obrigação de prestar honras divinas aos imperadores e aos deuses do Estado romano. Pra muita gente isso não tinha problema, já que a maior partes dos habitantes do mundo antigo era politeísta mesmo e não ligava de acender vela para mais um deusinho. Mas foi justamente isso que colocou os cristãos em rota de colisão com o império. Em que isso é diferente da presença dominadora do Islã no califado original?
Continuando com as falas do autor de “O Mínimo”:
“Ademais, numa comparação com o supostamente bondoso império islâmico, não consta que o Império Romano mandasse capar os escravos que aprisionava. Os islâmicos fizeram pelo menos 20 milhões de escravos na África e caparam 80% dos homens. A escravidão islâmica foi genocídio puro e simples. Pior, para empreendê-lo, foram eles os primeiros a inventar as teorias da inferioridade racial negra, já desde o século 11 da nossa era.”
Bom, 1)em nenhum momento eu disse que o império islâmico era “bondoso”. Impérios são ruins por definição. A questão é saber quão ruim, de que maneira, pra quem, comparado com o quê – a gente já volta a esse tema.
Em segundo lugar, é lógico que escravizar e castrar gente, bem como criar teorias raciais pra justificar isso, é horrendo. Horrendo, mas não único – o Império Bizantino produzia eunucos a granel, assim como o Império Persa e a China imperial. (E italianos católicos castraram meninos para transformá-los em cantores de voz especialmente maviosa até meados do século 19 – dá até pra ouvir gravações de um dos últimos dos “castrati” da Capela Sistina, Alessandro Moreschi, que morreu em 1922.)
De qualquer jeito, a discussão não é relevante para o tema do meu vídeo (e que também era o tema do vídeo do Brasil Paralelo), que era a relação entre conquistadores islâmicos e seus súditos cristãos e judeus nos primeiros séculos do califado (e não no Império Otomano, por exemplo). Africanos negros eram, em geral, pagãos (fora etíopes judeus e cristãos), e portanto, infelizmente, tratados de modo muito mais tirânico pelo Islã do que se deu com os monoteístas, os quais, ao menos em tese, eram vistos com algum respeito no próprio texto do Corão.
Só pra fechar esse ponto: sério mesmo que o Ocidente cristão tem moral pra apontar o dedo pra feiura do escravagismo islâmico na África? E aquele negócio de tirar a trave do seu olho antes de tirar o cisco do olho do seu irmão, hein?
CONVERSÕES FORÇADAS?
Voltando aos comentários de Carvalho:
“Esse sujeito não sabe NADA de história islâmica. As conversões forçadas começaram DESDE O PRIMEIRO DIA da expansão islâmica, impostas por Maomé em pessoa.”
Como o pensador não mostrou um tremendo apreço pela precisão vocabular em suas falas, fica meio difícil saber o que ele quer dizer com “desde o primeiro dia”. Também é beeeem complicado confirmar detalhes sobre as decisões políticas de Maomé, já que os mais antigos relatos biográficos alentados sobre o profeta surgem cerca de um século e meio após sua vida.
Seja como for, será que ele está falando da tribo judaica dos Banu Qurayza, da cidade de Medina? Conta-se que, durante a chamada Batalha da Trincheira (627 d.C.), esse grupo, antes aliado de Maomé, teria tentado negociar a rendição de Medina diante do exército pagão vindo de Meca. Ao ficar sabendo disso, o profeta ordenou a morte de todos os homens do clã, poupando apenas alguns que se converteram ao Islã (mulheres e crianças foram escravizadas). Mas isso depois de várias escaramuças com Meca e outras brigas – nas quais não houve conversão forçada – com outras tribos judaicas de Medina. A conversão na marra, nesse caso, parece ter sido punição pela saída da aliança – ao menos é o que sugerem as fontes que chegaram até nós (obviamente, com seus vieses).
Conforme a hegemonia muçulmana foi se estendendo por toda a Arábia, Maomé de fato exigiu a conversão da maior parte dos derrotados – os que eram pagãos, bem entendido. Tribos judaicas vencidas em outros lugares da península conseguiram continuar adeptas do judaísmo, ao menos inicialmente. Aqui fica claro o duplo padrão da ideologia islâmica: tolerância relativa com monoteístas, ultimatos mais severos com pagãos.
De novo, a questão aqui é de tolerância/tirania RELATIVAS. Quando o Islã sai da Arábia e chega aos territórios do Império Romano do Oriente e do Império Persa (e, um pouco mais tarde, à Espanha visigótica), ele encontra basicamente monoteístas (considerando os zoroastrianos persas “monoteístas honorários”, apesar de serem dualistas, o que era a prática islâmica), ou “Povos do Livro”, como diz o Corão. E aí a coisa é muito mais complicada e nuançada.
Primeiro: conversão forçada em massa ocorreu nesses contextos? A resposta dada pela documentação histórica é um retumbante NÃO. Havia só um punhado de exércitos árabes (mais tarde, berberes também) altamente disciplinados e motivados para dominar uma região maior que o Império Romano em seu auge. Eles provavelmente não tinham força militar suficiente pra conduzir uma campanha de extermínio caso quisessem forçar a conversão de todo mundo.
Além disso, precisavam do conhecimento técnico de como gerir um grande império que só a antiga classe de funcionários imperiais ligados ao Império Romano do Oriente e ao Império Persa possuía. A solução inicial, portanto, foi criar cidades-guarnições para os exércitos de ocupação, separadas da população conquistada, e deixar o grosso da burocracia imperial nas mãos de cristãos e judeus (e às vezes zoroastrianos). Não é por acaso que um dos livros que citei lá em cima tem “a herança de Roma” no título: os dois primeiros séculos de domínio islâmico podem ser facilmente vistos como uma continuação do legado do Império Romano do Oriente – com uma elite distinta no topo, é claro.
Considere a família Mansûr, por exemplo – árabes cristãos que viviam em Damasco, capital da Síria (e do califado a partir da segunda metade do século 7º d.C.). O patriarca – chamado Mansûr, veja só – era o responsável por coletar impostos para o imperador romano do Oriente, Heráclio, pouco antes da conquista, e parece ter ajudado a negociar a rendição da cidade para as forças árabes no ano 635. Seu filho, Sarjûn (ou seja, Sérgio), se tornou o supervisor fiscal de todo o Oriente Médio em nome dos califas. E o neto, Mansûr bar Sarjûn, só deixou a corte de Damasco no ano 700, para se transformar no monge João Damasceno (é possível que ele também tenha servido ao califado antes dessa data).
No mesmo período, o maior poeta da corte, especialista no emprego do árabe seguindo estilos anteriores ao surgimento do Islã, era al-Akhtal (640-710), um cristão monofisita (crença segundo a qual Jesus só tinha uma natureza, a divina) pertencente a uma tribo árabe da Alta Mesopotâmia. (Clãs de origem árabe já tinham se espalhado por boa parte do Oriente Médio séculos antes da conquista, o que certamente deve ter facilitado a instalação do Islã.)
No Egito, a mesma coisa: em torno do ano 715, o governador muçulmano da província, Qurra ibn Sharik, ainda estava trocando cartinhas em grego com um potentado cristão chamado Basilios, pagarca (grosso modo, “prefeito”) da cidade de Afrodito, no curso médio do Nilo. Até o ano 800, aliás, não há registro de mesquitas na zona rural egípcia. Nessa mesma época (fim do século 8º d.C.), ainda havia igrejas novas sendo construídas nas cidades e na zona rural do norte da atual Jordânia. E, falando em igrejas, por volta do ano 730 d.C. o califa Hisham resolveu construir um palácio e uma mesquita em Sergiópolis (Rusafa, em árabe – fica no leste da Síria), centro de culto a são Sérgio, santo muito popular entre os árabes cristãos. Ele destruiu a igreja? Não, construiu a mesquita do lado, inclusive dividindo um pátio com o santuário de são Sérgio.
E que tal um pouco de dados arqueológicos? Em Jerash, os fabricantes de lâmpadas (olha que coisa mais “Mil e Uma Noites”), diante do novo regime, passaram a produzir lâmpadas com uma inscrição em grego de um lado (“a luz dos cristãos é a Ressurreição”) e em árabe do outro (“em nome de Alá, o Misericordioso, o Compassivo”). (Não achei imagens dessas lâmpadas, infelizmente.)
FALAM OS CRONISTAS
O que dizem os cronistas cristãos sob domínio islâmico nesses primeiros séculos? João bar Penkâye, escrevendo em siríaco em 687 d.C., em parte relembra com horror a conquista inicial:
“Deus chamou contra nós um reino bárbaro – um povo que não está aberto à persuasão, cuja prazer é dominar todas as nações, cujo desejo é fazer cativos e organizar deportações.”
E, logo depois, elogia o califa Mu’awiya (661-680) por encerrar a guerra civil que tinha dilacerado o jovem império:
“Ele se tornou rei, controlando ambos os reinos, o dos persas e o dos romanos. A justiça floresceu em sua época, e houve grande paz nas regiões sobre seu controle. Ele permitiu que todos vivessem como desejassem.”
Outro ponto crucial: a maioria dos cristãos das províncias conquistadas do Império Romano do Oriente era contra a teologia ortodoxa de Constantinopla e sofria perseguição por causa disso (já falamos dos monofisitas, havia também os nestorianos). A chegada do Islã, ao menos inicialmente, pôs fim a isso – não porque os seguidores de Maomé fossem bonzinhos, mas porque pra eles tanto fazia se você, cristão, era monofisita, ortodoxo ou testemunha de Jeová (mentira, testemunhas de Jeová ainda não existiam; sem nenhum desrespeito aos membros dessa igreja). Eis o que diz um monofisita do século 7º, um sujeito chamado Dionísio de Tell-Mahre:
“Quando Ele [Deus] viu que a medida dos pecados dos romanos tinha transbordado, atiçou os filhos de Ismael [os árabes] e os tirou de sua terra no sul. Entretanto, foi por realizar um trato com eles que conseguimos nossa libertação. Não foi um ganho desprezível sermos libertados do reino tirânico dos romanos.”
E, nas regiões do antigo Império Persa, onde a religião oficial tinha sido o zoroastrismo, os cristãos nestorianos também viram vantagem na troca:
“Antes de os convocar, [Deus] os preparou de antemão para tratar com honra os cristãos. De que outra maneira homens nus, cavalgando sem armadura e escudo, teriam conseguido derrotar o espírito orgulhoso dos persas?”
O processo de islamização já estava acontecendo, óbvio. Primeiro veio a arabização: a partir do ano 700, o árabe virou a língua oficial do império (antes, grego, siríaco e copta eram muito usados), e o contato com a cultura árabe facilitou o acesso ao Islã e o interesse, tanto das elites quanto do povão, de ascender social e economicamente pela conversão – voluntária, é bom frisar. Mesmo assim, tecnocratas não muçulmanos falantes do árabe tinham destaque na nova corte imperial fundada em Bagdá, por exemplo durante o reino do célebre califa Harûn al-Rashid (786-809), contemporâneo de Carlos Magno. Literatos muçulmanos reclamavam que havia tantos cristãos em Bagdá que eles tinham levado à elevação do preço do peixe (muito consumido por eles nos dias de abstinência de carne de vertebrados terrestres), como al-Jahîz em sua “Refutação dos Cristãos”:
“Os cristãos agora têm montarias custosas e cavalos puro-sangue. Possuem matilhas de cães de caça e jogam polo, se embrulham em tecidos finos e fingem ter nomes de família árabes.”
E no extremo ocidental dos domínios muçulmanos, vale lembrar a figura do judeu Hasdai ibn Shaprut, nascido por volta do ano 915. Médico, rabino e “ministro das Relações Exteriores” do califado de Córdoba, na Espanha, negociou em nome do califa com o Sacro Império Romano-Germânico, com o Império Bizantino e com os reinos cristãos da Espanha (que viviam pedindo ajuda do poderoso califa para lutar entre si, veja você).
As estimativas dos historiadores hoje dão conta de que, de maneira geral, o Oriente Médio só passou a ter maioria muçulmana em torno do ano 1000 – um pouco mais tarde que isso no Egito, talvez. Quase 400 anos para a “conversão forçada” chegar a metade da população. Tá meio ineficiente essa conversão forçada, né?
É claro que a situação para os não islâmicos estava muito, muito longe de ser um mar de rosas. Exigia-se, por exemplo, que eles pagassem seu imposto especial, a “jizya”, com a palma da mão virada para cima, de modo que sua mão nunca ficasse mais alta que a do funcionário muçulmano que recebia o dinheiro, em sinal de submissão. Deviam sofrer inúmeras pequenas humilhações intoleráveis para nós hoje. Mesmo assim, se você fosse membro de uma minoria religiosa naquela época e pudesse escolher entre o Império Bizantino em Constantinopla, o Império Carolíngio na Europa Ocidental e os domínios do Islã, sua vida seria bem mais fácil se optasse pela letra C, amigo.
Alguém aí disse que eu não entendo nada de história islâmica. Peço respeitosamente licença pra discordar 😉
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