Guia rápido para não perder a cabeça sobre biologia e comportamento
Por razões que a própria razão desconhece, falar dos aspectos biológicos do comportamento humano é receita garantida para treta. É muito difícil que qualquer discussão sobre o tema não vire uma polêmica interminável e infrutífera. Gostaria de oferecer ao dileto leitor uma pequena caixa de ferramentas conceituais para evitar mal-entendidos, generalizações e forçadas de barra quando o assunto aparece. Espero que seja útil. Vamos lá?
1)Seres humanos também são animais: esse fato não muito misterioso, reconhecido pelo menos desde os tempos de Aristóteles (século 4º a.C.) e do livro bíblico do Eclesiastes, às vezes ainda faz as pessoas olharem torto pra mim quando o menciono, mas não vejo por que deveria provocar esse tipo de reação.
Afinal, todo mundo nasce, cresce e morre, precisa comer e fazer cocô, as mulheres amamentam seus bebês, os homens têm pipi, temos sangue, ossos, músculos, cérebro. Tudo isso são características de muitos outros animais como nós. Seria muito improvável que outras coisas também típicas de animais – instintos, pendores, tendências naturais de entender o mundo – não influenciassem igualmente a maneira como a gente se comporta.
Note bem: usei o verbo influenciar, não o verbo determinar (explico a diferença no próximo item). O que expus acima significa que o homem é “só” um animal? Bem, defina “só” (não conheço animal, por mais simples que seja, cuja complexidade possa ser desprezada por essa palavrinha). Nossa natureza inclui coisas bem distintas da de outros animais? Sem dúvida – a começar pela ferramenta inigualável chamada linguagem que estou usando aqui. Mas, ainda que não sejamos “só” animais, nós também somos animais – e isso é importante.
2)“Influenciar” é diferente de “determinar”: muita gente vive com medo de um tal “determinismo biológico” (ou “determinismo genético”, pra quem é mais específico) – a ideia de que aceitar o peso da biologia no nosso desenvolvimento equivaleria a abraçar uma versão pós-moderna do Destino com D maiúsculo. Faz sentido temer isso?
Não, não faz. Em muitos casos, influências biológicas não são mais poderosas do que a alimentação que você consome, os livros que lê ou os amigos com quem convive. Basta pensar na diferença que faz, para a altura, o peso e a inteligência de um adulto, se ele viveu num lar amoroso com comida adequada quando era criança ou se passava fome e era maltratado desde bebê.
Tem muito mais lógica pensar num sistema de interações entre potencial biológico/genético e condições ambientais. Um sistema de interações que é complicado, difícil de elucidar completamente e que varia também de característica para característica: algumas mais permeáveis a influências externas, mais plásticas, outras mais “robustas” do ponto de vista do desenvolvimento – mais inflexíveis, se você quiser. (Afinal de contas, se assim não fosse, seres humanos poderiam se transformar em vegetais de tanto comer chuchu, o que a gente não costuma ver por aí.)
3)Pessoas são pessoas, não médias estatísticas: feito são João Batista clamando no deserto, esse item eu vivo bradando por aí, mas muita gente não escuta.
Pode ser, por exemplo, que em média – atenção ao itálico, por gentileza – homens sejam um pouco melhores do que mulheres no que diz respeito ao raciocínio espacial, enquanto as moças sejam, em média, um tiquinho melhores do que os rapazes na capacidade de interpretar as emoções de outrem. (Essas hipóteses até que têm bastante apoio empírico por trás delas, aliás, mas podem ser derrubadas no futuro – é assim que a ciência funciona.)
Digamos que essas afirmações sejam verdadeiras. Isso significa que deveríamos desencorajar as garotas que querem virar engenheiras civis ou os moços que gostariam de se formar em psicologia? Não, não, mil vezes não, mui nobre leitor(a)! O termo em média implica variação – e muitas vezes variação grande. Há inúmeras mulheres por aí que conseguiriam projetar uma estação de metrô melhor que muito homem, assim como muitos homens que choram assistindo “Divertidamente”, da Pixar (feito eu). As tendências estatísticas podem ser interessantes e importantes em vários aspectos, mas elas nunca deveriam ser usadas como julgamentos pétreos para decidir quem uma pessoa individual é ou seria capaz de fazer ou não fazer.
4)Natural não significa bom ou moralmente correto: fuja da chamada falácia naturalista – a ideia de que só as coisas “naturais” são boas ou a de que, se algo é bom, é porque é natural.
Como alguém já disse, a Natureza é aquela senhora bondosa que inventou a tuberculose, o mosquito da dengue e os terremotos. É totalmente natural a fêmea de louva-deus mastigar avidamente a cabeça do macho enquanto este copula com ela, e nada mais natural do que leões sumariamente eliminando os filhotes das fêmeas do bando que acabaram de conquistar, de forma que elas possam ser engravidadas por eles próprios.
Somos capazes de estabelecer critérios racionais para tentar determinar o que é certo e o que é errado. O que vemos na natureza pode até dar indicações intrigantes sobre o que funciona e não funciona em espécies como a nossa, mas não passa disso.
5)Explicar não significa justificar: um ponto implícito no item anterior é que, quando analisamos um comportamento comum na natureza e tentamos entender a lógica por trás dele, isso está longe de justificar esse comportamento – vale dizer, não é uma defesa de que ele é correto. Médicos tentam entender a dinâmica das doenças não para dar uma forcinha ao vírus da dengue, mas para achar maneiras de detê-lo sempre que possível. O homicídio e o estupro podem ser explicados pelo prisma da biologia – o que não significa que ele sejam coisas ótimas que a gente deveria continuar a fazer.
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