Crustáceo que clona a si mesmo está invadindo rios e lagos do planeta
Não me perguntem o porquê, mas aparentemente algumas pessoas acharam que seria uma ótima ideia criar o lagostim-mármore (Procambarus virginalis) como bichinho de estimação em aquários. Bem, uma nova análise do genoma da criatura confirmou que o bicho é um caso raríssimo: uma espécie que acabou de surgir a partir de enormes modificações no DNA de seu ancestral, com capacidade de clonar a si mesmo em ritmo alucinante e uma habilidade aterrorizante de invadir ambientes de água doce mundo afora.
Os detalhes dessa história acabam de sair num estudo liderado por Frank Lyko, do Centro Alemão de Pesquisa do Câncer (eu já explico essa associação inusitada entre crustáceos e tumores). Lyko e seus colegas publicaram os dados na revista científica “Nature Ecology & Evolution”. Eles fizeram a leitura completa do genoma do P. virginalis – aliás, é a primeira vez que alguém “lê” o conjunto do DNA de um decápode, como são chamados os crustáceos do grupo dos camarões, caranguejos e lagostas.
O bicho nunca tinha sido notado pela ciência até aparecer no mercado de aquaristas da Alemanha nos anos 1990. A análise de DNA confirmou o porquê: na verdade, trata-se de um animal que provavelmente surgiu faz poucas décadas a partir de outra espécie, o P. fallax, nativo do sul dos EUA.
Acredita-se que, já em cativeiro, um macho e uma fêmea de P. fallax cruzaram, mas aconteceu uma esquisitice tremenda com um dos embriões. Quase todos os animais possuem duas cópias de cada cromossomo – aquelas estruturas enoveladas onde o DNA fica armazenado. Uma das cópias vem do pai e a outra, da mãe. Seres humanos, por exemplo, têm 23 pares de cromossomos (46 no total). Só que, no caso desse cruzamento do lagostim, um óvulo ou espermatozoide continuou com as duas cópias de cada cromossomo, enquanto a outra célula sexual tinha apenas uma cópia. Resultado: um embrião com três cópias de cada cromossomo – ou triploide, como dizem os biólogos, com o portentoso total de 276 cromossomos.
Normalmente, uma criatura desse tipo seria inviável ou infértil, mas há exceções a essa regra na natureza, e o lagostim-mármore é um dos exemplos. O bicho surgido dessa esquisitice genética, uma fêmea, conseguiu se reproduzir por partenogênese: seus óvulos não fecundados davam origem a cópias quase exatas da mãe (fora uma ou outra mutação espontânea no DNA, coisa que é esperada mesmo no caso de clones). Resultado: um único bicho era capaz de gerar centenas e centenas de lagostins sem a ajuda de nenhum macho. (Isso explica, aliás, o virginalis no nome científico do bicho: partenogênese quer dizer “nascimento virgem”).
Bem, alguns criadores alemães começaram a soltar os crustáceos clonados na natureza. Vários países da Europa Central agora têm populações deles em seus lagos e rios. Pra piorar, o bicho foi levado – ninguém sabe exatamente como – pra Madagáscar, onde já conta com populações de milhões de indivíduos competindo com as espécies nativas de lagostins. Tudo indica que a partenogênese, que permite a criação de uma população inteira a partir de um único indivíduo, ajuda a explicar esse potencial invasivo da criatura.
Por que estudar isso (além do fato de ser muito legal e assustador)? Além da importância de saber como espécies invasoras (que são consideradas grandes ameaças à biodiversidade) se comportam, tem uma coisa de grande interesse para humanos que funciona de um jeito parecido: células de tumor. As células do câncer também surgem de mutações que conferem grande capacidade de se clonar a um único “indivíduo” (uma célula) que se espalha pelo organismo. Estudar o lagostim talvez ajude a entender melhor como a doença se espalha, portanto.
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