Ainda estamos evoluindo? A resposta é um sonoro “sim”!

O novo vídeo do canal do blog no YouTube responde afirmativamente à pergunta de 1 milhão de doletas: a evolução humana continuou no passado recente e continua no presente? Confira abaixo. (Acima, o geneticista sueco Svante Pääbo segura um crânio de neandertal, hominídeo cujo genoma ele decifrou.)

E pra quem prefere a coisa toda por escrito, é com prazer que compartilho abaixo um capítulo do meu livro “Além de Darwin” que versa justamente sobre esse tema. O “Além de Darwin”, aliás, pode ser adquirido em versão ebook por módicos R$ 2 na Amazon!

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Acelerados
A evolução humana acabou ou está ficando mais rápida do que nunca?

Os mais cínicos entre os antropólogos costumam dizer que “mitologia” é só o nome que a gente gosta de dar para a religião dos outros. De forma ironicamente parecida, nossa espécie às vezes parece achar que evolução é um troço que acontece com as outras espécies, não conosco. OK, podemos ter sido primatas peludos e quadrúpedes antigamente, mas agora já somos Homo sapiens crescidinhos, chegamos ao topo da Grande Cadeia do Ser e não precisamos mais desse método tosco envolvendo mutações e seleção natural. Já inventamos a cultura, que faz o mesmo serviço de modo muito mais limpinho.

E se essa visão “estacionária” sobre a evolução humana estivesse tão errada a ponto de ser quase ridícula? E se, na verdade, estivéssemos passando por uma explosão evolutiva sem precedentes, com transformações biológicas (e não apenas culturais) que chegam a ser cem vezes mais rápidas nos últimos milênios do que foram nos 6 milhões de anos anteriores de história humana?

Mesmo entre os cientistas, a idéia acima não tem nada de ortodoxa. O consenso (ou a coisa mais parecida com ele que consegue subsistir numa área tão controversa quanto a evolução humana) é que, há pelo menos uns 40 mil anos, nossos ancestrais adquiriram essencialmente as mesmas características mentais e físicas que nós. A data está ligada a uma série de “impressões digitais” do comportamento humano moderno que só então aparecem com força no registro arqueológico: arte (pintura e escultura) de altíssima qualidade, o que implica uma mente capaz de lidar com símbolos; roupas costuradas; ferramentas sofisticadas, montadas com muitas peças feitas de materiais variados; caça sistemática e planejada a animais de grande porte. Todos esses fenômenos seriam resultado do aparecimento da mente humana moderna, dotada de “fluidez cognitiva”, como talvez você esteja lembrado – a capacidade de misturar domínios mentais (como o raciocínio social e o tecnológico, por exemplo) de forma inovadora e criativa, o que seria um pré-requisito para a evolução cultural acelerada.

Juntando tudo isso com o que sugerem os fósseis, seria possível afirmar que esses antigos Homo sapiens teriam poucas dificuldades para viver na Grande São Paulo de hoje. No máximo, seriam mais vulneráveis a gripes, resfriados e outras doenças que começaram a atacar nossa espécie quando passamos a viver em grandes aglomerações.

Algumas notas dissonantes nesse quadro simples já vinham sendo emitidas aos pouquinhos pela genômica, o ramo da biologia que se debruça sobre a seqüência de “letras” químicas do DNA. Depois de “soletrar” o genoma humano e o de nosso parente vivo mais próximo, o chimpanzé, os especialistas detectaram, com a ajuda de métodos estatísticos, “assinaturas” de seleção natural recente – alterações exclusivas do DNA humano cuja freqüência parece ter aumentado muito há relativamente pouco tempo.

A coisa estava mais ou menos nesse patamar quando um quinteto de pesquisadores americanos enfiou o pé na porta de vez. O trabalho dos cinco foi publicado em dezembro de 2007 na revista científica “PNAS” e ainda está causando controvérsia ao propor que, nos últimos 10 mil anos, a evolução humana passou a acontecer cerca de cem vezes mais rápido. A pesquisa é especialmente suculenta porque eles partem de um pressuposto teórico quase inatacável: nossa população cresceu tanto, com tanta rapidez e em tantos ambientes diferentes, que a evolução acelerada seria inevitável.

Considere comigo o raciocínio, nobre leitor. As mutações – transformações aleatórias nas “letras” do DNA – são a matéria-prima da evolução. A imensa maioria delas é prejudicial (causando doenças de origem genética) ou neutra (não tendo efeito sobre as proteínas cujo código está contido no DNA e que comandam o organismo). Um número minúsculo de mutações, no entanto, pode ser vantajoso, possibilitando que alguns indivíduos sobrevivam e se reproduzam de forma mais eficiente que os demais.

Ora, quanto mais indivíduos existem, mais matéria-prima evolutiva há, já que temos mais cópias de DNA de uma espécie prontas a sofrerem mutações. Acontece que o Homo sapiens passou por um aumento desproporcionalmente alto de matéria-prima: talvez houvesse apenas uns 10 mil de nós algumas dezenas de milhares de anos atrás, enquanto hoje somos mais de 7 bilhões – ou seja, um crescimento populacional de 600 mil vezes. É de deixar qualquer um zonzo.

A matéria-prima, por si só, não é tudo. As mutações “precisam” (metaforicamente, claro) de ambientes onde atuar, e os últimos milhares de anos foram pródigos em nos oferecer todo tipo de novo desafio ambiental. Para começar, saímos da África – provável origem da maior parte do material genético humano moderno – e colonizamos literalmente todas as regiões da Terra, da floresta equatorial amazônica à Groenlândia. Trocamos uma mistura ultravariada de frutas, sementes, raízes, mel, um pouco de peixe e carne de caça (cardápio que caracteriza os caçadores-coletores tropicais) pelas dietas padronizadas de cereais e carnes dos povos “civilizados”. E, talvez mais importante ainda, nossas sociedades mudaram profundamente.

“Uma das maiores mudanças pelas quais a maioria dos humanos passou foi a transformação de uma estrutura social de caçadores-coletores numa sociedade agrícola há 10 mil anos”, explicou-me Robert K. Moyzis, geneticista da Universidade da Califórnia em Irvine e um dos autores do estudo na “PNAS”. “Muitas alterações vieram daí, algumas das quais documentadas em esqueletos – passamos a ser atacados por doenças modernas. Mas não é só isso. A maioria das sociedades de caçadores-coletores exibe interações sociais limitadas entre os diferentes grupos familiares, nenhuma acumulação de riquezas e reações diferentes das nossas ao estresse – normalmente eles simplesmente viram as costas e vão embora, em vez de enfrentar situações estressantes”, diz Moyzis.

“Quando surgiram comunidades grandes e estáveis, ou seja, cidades, tudo isso mudou. As interações freqüentes entre membros de família diferentes aumentaram, o acúmulo de riquezas na mesma geração e entre gerações diferentes se tornou possível e os altos níveis de estresse não podiam mais ser resolvidos simplesmente indo embora. Acho muito provável que o novo nicho ecológico ocupado pelos seres humanos seja a nossa própria cultura”, afirma.

De fato, faz todo o sentido no papel. E nos genes? O que o genoma humano diz sobre isso tudo? É aí que a coisa começa a ficar interessante. Moyzis e companhia puderam analisar um dos mais completos mapas da diversidade genética humana, o HapMap. Todos os membros da nossa espécie são bastante parecidos geneticamente, mas nosso DNA está salpicado de variações minúsculas, correspondentes à troca de uma única “letra” de DNA. (Caso você tenha tirado um cochilo nas aulas de biologia, essas letras são conhecidas como C, T, G e A.) Tais variantes, ou SNPs (pronuncia-se “snips”; ótimo nome pra cachorros), chegam a quase 4 milhões na contagem feita pelo pessoal do HapMap.

A troca de uma única letra, ou seja, um único SNP, é suficiente para inutilizar um gene inteiro ou alterar a proteína codificada por ele (ainda que nem sempre; certas substituições são “sinônimas”, ou seja, não afetam o produto final codificado pelo gene alterado). Conforme documentado pela equipe do HapMap, os SNPs variam entre as populações humanas (no projeto foram estudados europeus, africanos da etnia iorubá, chineses e japoneses), e essa variação parece estar associada à adaptação de cada povo às condições do local onde vive.

Mas como saber se essa variabilidade é recente, ou que ela aumentou só de uns tempos para cá? O quinteto americano usou um truque especial para tentar verificar isso. Para entendê-lo, é importante lembrar que os seus genes nunca ficam “sentados” no mesmo lugar durante muito tempo. De geração em geração, quando produzimos espermatozóides ou óvulos, o DNA que recebemos do nosso pai e da nossa mãe passa pela chamada recombinação, sendo misturado e só então repassado aos nossos filhos – aliás, essa mistura parece ser um dos papéis evolutivos mais importantes do sexo, como já vimos.

Lembre-se de que todos temos duas cópias do nosso material genético, distribuídas em pares de cromossomos. Só passamos metade disso para os nossos filhos – do contrário, eles teriam o dobro dos nossos genes. Ora, essa divisão nunca pára de acontecer: nossos netos têm um quarto do nosso DNA, nossos bisnetos apenas um oitavo, e por aí vai. As sucessivas picotagens e recombinações significam que dois genes (ou trechos menores de DNA) que hoje aparecem num único bloco dos seus cromossomos vão estar separados no futuro distante. Quanto mais próximos os genes – ou os SNPs, que é o que nos interessa aqui – mais tempo isso demora para acontecer.

E esse é o pulo do gato. Em cada população, os pesquisadores foram em busca de blocos relativamente grandes de DNA, que incluíam vários SNPs de uma vez só e tinham freqüência alta – acima de 20% num dado grupo. O fato de o bloco ser comum indicaria, primeiro, que provavelmente ele está sendo favorecido pela seleção natural (do contrário, deveria ser raro); e o fato de aparecer inteiraço, sem ser “quebrado” pela recombinação, indica que o grupo de SNPs se espalhou tão rápido pela população que não deu tempo de a recombinação fatiá-lo em pedaços menores.

Aplicado esse critério, os números que brotaram são de deixar qualquer um baqueado. Os pesquisadores dizem ter encontrado uma “assinatura” de seleção natural em nada menos que 3.000 SNPs de cada uma das populações estudadas pelo HapMap. O próximo passo foi usar um modelo matemático para estimar quando as variantes que estão sendo favorecidas pela seleção natural teriam tido um pico em seu surgimento. O veredicto: cerca de 8.000 anos atrás para as populações africanas e pouco mais de 5.000 anos atrás para as populações européias. Para os pesquisadores, os dados casam com o aumento da população africana no fim da Era do Gelo (momento em que o continente ficou menos seco e mais propício às sociedades humanas) e com a chegada da agropecuária à Europa, que também deflagrou uma explosão populacional das grandes. Nas palavras nem um pouco moderadas de John Hawks, antropólogo da Universidade de Wisconsin e co-autor do estudo, “nós somos mais diferentes das pessoas que viviam há 5.000 anos do que eles eram diferentes dos neandertais”.

Alguns dos genes de que estamos falando podem ser diretamente flagrados no registro fóssil. A maioria das pessoas da Europa Ocidental moderna, por exemplo, não tem problemas para digerir leite mesmo durante a vida adulta. No entanto, a “condição ancestral” humana (ou seja, o que parece ser a forma original do nosso metabolismo nesse quesito) é só digerir leite durante os primeiros anos da infância; afinal, caçadores-coletores não criam vacas holandesas. Acontece que o DNA de europeus que tinham “acabado de começar” a ter rebanhos leiteiros, há uns 5.000 anos, não contém a nova versão do gene ligado à digestão do leite. Tudo indica que foi o novo modo de vida o responsável por favorecer o espalhamento do gene “bebezão” na Europa Ocidental durante os últimos milhares de anos. Outros exemplos podem ser encontrados, como a resistência à malária no Mediterrâneo e na África, a facilidade de digerir grandes quantidades de amido (ideal para dietas à base de trigo ou milho, como as nossas) e até os tipos físicos de asiáticos e europeus, que parecem ser modificações do padrão ancestral africano. (Sim, senhores racistas, seus ancestrais quase certamente eram retintos.)

Dito desse jeito, os exemplos não parecem lá muito emocionantes. Aparência, resistência a doenças e capacidade digestiva não casam muito bem com a idéia que as pessoas fazem de uma explosão evolutiva. Mas os pesquisadores apostam que as nossas características comportamentais e mentais também podem ter mudado um bocado.

“Sabemos que uma variante do gene do receptor D4 de dopamina [um mensageiro químico do cérebro] está sob forte seleção positiva. Ele está associado com hiperatividade infantil, desejo de correr riscos entre adultos, uma tendência a ser um tanto egoísta e uma vida sexual mais ativa. Meu palpite é que ele andou sendo favorecido em sociedades onde há muita guerra e pouco investimento dos homens na criação dos filhos”, contou-me Henry Harpending, co-autor do estudo, que trabalha na Universidade de Utah.

Moyzis segue a mesma linha de raciocínio. “Dos cerca de cem genes clássicos ligados aos neurotransmissores [nome dado aos mensageiros químicos cerebrais], 40% exibem evidências de seleção recente, muito mais do que esperaríamos ao acaso. Muitos estão sabidamente relacionados a variações de humor, excitabilidade geral etc. Será que não domesticamos a nós mesmos para que conseguíssemos viver em comunidades altamente densas, coisa que nunca tínhamos feito antes?”

Com uma população tão grande como a nossa, e com desafios tão gigantescos como as mudanças culturais e sociais que vêm por aí ou já estão ocorrendo, os pesquisadores dizem não acreditar que a força dessa onda evolutiva vá arrefecer.

“A medicina certamente vai diminuir a ação da seleção natural causada por doenças, mas um monte de outras coisas importantes está acontecendo. Por exemplo, com a facilidade de acesso aos anticoncepcionais, apenas as mulheres que realmente querem filhos vão se reproduzir. Antigamente, as coisas aconteciam ao acaso. Em muitas sociedades, não é mais necessário que uma mulher tenha um parceiro confiável, que a ajude a criar os filhos, de forma que os machos ‘aproveitadores’ [que não auxiliam a parceira no cuidado com a prole] provavelmente estão sendo favorecidos pela seleção natural”, diz Harpending. “Além disso, a minha impressão é que estamos vendo muito mais problemas mentais, especialmente entre os jovens. O suicídio de adolescentes não é uma causa trivial de morte nos Estados Unidos. Também temos muito mais asma por aí do que eu via quando criança. Não acho que tenhamos uma boa idéia do efeito líquido de todas essas coisas na nossa evolução”, disse-me ele.

É natural que sintamos um misto de perplexidade e arrepio na espinha ao pensar em tudo isso. A única certeza é que não podemos ter certeza de nada. É claro que mais testes e métodos mais refinados são necessários para confirmar que a evolução humana está em ritmo de trem-bala. Marcelo Nóbrega, pesquisador da Universidade de Chicago e um dos principais geneticistas brasileiros, alertou-me que outros trabalhos obtiveram estimativas vastamente diferentes para a evolução recente de genes humanos.

De qualquer maneira, a idéia simplista e um tanto ridícula de que nosso futuro evolutivo resumir-se-ia a um bando de baixinhos cabeçudos com braços e pernas atrofiados não chega nem perto de fazer jus à complexidade das forças que liberamos sobre nossos corpos e mentes ao criar, inconscientemente, o que chamamos de civilização. Podemos tentar à exaustão, mas o laço que nos prende à maneira como funcionam todas as formas de vida na espiral do tempo não vai se esgarçar tão fácil. Para o bem e para o mal, vamos continuar evoluindo.