Um perfil de Sylvia Earle, a mulher, o mito da exploração submarina

Reinaldo José Lopes

Passei a semana passada praticamente inteira tentando falar com a lenda Sylvia Earle, 82, bióloga marinha que ajudou a revolucionar nossa compreensão dos oceanos e é uma das principais vozes em defesa da vida marinha há várias décadas. Consegui aos 45 minutos do segundo tempo e fui ao lançamento de seu livro “A Terra É Azul” em São Paulo. Mas, como eu e meus chefinhos Mariana Versolato e Gabriel Alves não sabíamos se a jovem senhora teria um tempinho pra conversar com a Folha, resolvemos deixar pronto, por via das dúvidas, um pequeno perfil dela, que sairia no lugar da entrevista (caso essa não existisse). Acho que o texto dá uma boa ideia da importância da figura. Portanto, é com prazer que o compartilho com o gentil leitor, abaixo.

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“Sylvia parte para navegar com 70 homens, mas não espera grandes problemas”, dizia a manchete do jornal queniano Mombasa Times em 20 de novembro de 1964. Era a primeira grande expedição da bióloga marinha Sylvia Alice Earle, que tinha deixado o marido e os dois filhos pequenos nos EUA para investigar a biodiversidade do oceano Índico.

Earle, hoje com 82 anos e ainda mergulhando regularmente, acabou se tornando o primeiro ícone feminino da exploração submarina numa época em que essa área de pesquisa, assim como quase todas as outras, ainda era um feudo dos homens. Estudiosa da imensa diversidade de espécies de algas dos oceanos, ela ajudou a desenvolver tecnologias que hoje permitem o acesso às zonas mais profundas do mar e é uma das principais defensoras da importância dos ambientes aquáticos para a sobrevivência da humanidade.

Nesta semana, a pesquisadora lançará o livro “A Terra é Azul”, com palestra no Teatro do Sesi, em São Paulo, e visitará Brasília para se encontrar com o presidente Michel Temer e pedir a criação de reservas ambientais marinhas.

GUARDANDO AS PEÇAS

Nascida em Gibbstown (Nova Jersey), em uma família de pescadores, alguns dos quais profissionais, Earle se mudou para a Flórida com os pais no começo da adolescência. Em “Mission Blue”, documentário sobre sua vida feito pelo Netflix em 2014, a pesquisadora afirma que tanto o pai quanto a mãe influenciaram sua carreira de bióloga e inventora – a mãe por cuidar de aves selvagens que se machucavam nas vizinhanças, o pai pela capacidade prodigiosa de desmontar e construir engenhocas.

“Meu pai me deixava desmontar as coisas, mas sempre ficava repetindo: você se lembrou de guardar todas as peças? Se não fez isso, não vai conseguir montar nada de novo”, lembra Earle, que costuma aplicar essa mesma lição aos riscos que a biodiversidade marinha corre: se não sabemos a função de cada espécie em seu habitat, como podemos imaginar que ela pode ser descartada sem riscos?

“Na Flórida, andar pela praia e ver os animais e as algas que o mar trazia era como passear pelo zoológico. Era o paraíso para mim. Por isso foi tão chocante ver o que aconteceu com o golfo do México com o derramamento de óleo [da plataforma de petróleo Deepwater Horizon, em 2010]. O paraíso virou um paraíso perdido”, conta. “Acho que a preocupação das pessoas com os ambientes marinhos seria muito diferente se elas tivessem tido a chance de ver o que eu vi décadas atrás, porque eu sei exatamente a diferença entre como era o mar e o que ele se tornou hoje.”

Earle esteve entre a primeira geração de pesquisadores americanos a testar as potencialidades do aqualung, o aparato leve de exploração submarina inventado pelos franceses Jacques Cousteau e Émile Gagnan nos anos 1940 e utilizado, com ajustes, até hoje. Com graduação na Universidade do Estado da Flórida e doutorado em ficologia (estudo das algas) na Universidade Duke, ela continuou a participar de expedições ao longo dos anos 1960 e se tornou uma espécie de celebridade científica em seu país no começo da década seguinte. É que a pesquisadora foi convidada para participar da equipe 100% feminina do experimento Tektite 2, na qual as cientistas passavam até 20 dias num habitat artificial submerso, um laboratório no fundo do mar.

Além de levantar dados científicos básicos sobre a saúde dos oceanos, Earle também passou a desenvolver aparatos para a exploração submarina profunda, como o Deep Rover, criado em 1985 em parceria com Graham Hawkes, engenheiro britânico que acabaria se tornando seu terceiro marido. Em 1990, tornou-se a primeira mulher a chefiar a Noaa (Administração Nacional dos Oceanos e da Atmosfera, a “Nasa do mar”), cargo em que permaneceu até 1992. Em 1998, foi nomeada exploradora-residente da National Geographic, função que ainda mantém.

Nos últimos anos, Earle têm mantido uma agenda lotada de viagens, conferências e eventos pelo mundo, raramente parando em casa. Na semana anterior à vinda para o Brasil, por exemplo, ela esteve no Chile e depois foi fazer uma palestra no Museu Americano de História Natural, em Nova York, antes de voltar para a América do Sul. No documentário do Netflix, porém, ela afirma que não tem vontade de evitar a correria por um tempo.

“Se você vê uma criança caindo do décimo andar de um prédio e está numa posição que lhe permite salvá-la, você por acaso vai dizer ‘Bem, acho que vou dar um tempo antes’? É claro que não”, compara. Earle tem três filhos, uma das quais, Elizabeth, hoje dirige sua empresa de engenharia de tecnologias subaquáticas, a Doer Marine.