Meu tributo a Denise Schaan, a arqueóloga que nos ajudou a redescobrir a antiga Amazônia
Muita gente brilhante nos ajudou a ter uma visão renovada da complexidade das civilizações do Brasil antes da chegada dos portugueses, mas raros são os que contribuíram tanto quanto a arqueóloga gaúcha Denise Pahl Schaan, da UFPA (Universidade Federal do Pará). Schaan tinha apenas 56 anos quando morreu no último dia 3 de março. Ela sofria de esclerose lateral amiotrófica, uma doença degenerativa que afeta os neurônios que controlam os movimentos, tal como a que acomete o físico britânico Stephen Hawking.
A pesquisadora deixa seu marido, um filho e uma filha, além de uma contribuição imensa em conhecimento. Quase todos os principais núcleos populacionais da Amazônia brasileira antes da invasão europeia foram estudados por ela, e é sobre isso que quero falar neste post. Durante a pesquisa para escrever meu livro “1499: O Brasil Antes de Cabral”, fiquei impressionado com a quantidade e o peso de seus trabalhos na região – ela parecia ter estado em todos os lugares que importavam (e, de fato, cheguei a chamá-la de “onipresente” no livro). Portanto, vamos aos trabalhos dela, sítio por sítio.
ILHA DE MARAJÓ
Na gigantesca ilha na foz do Amazonas, a pesquisadora e seus colegas trabalharam na região do Igarapé dos Camutins, afluente do rio Inajás. Em suma, eles mostraram que os antigos marajoaras, cuja sociedade complexa parece ter entrado em decadência alguns séculos antes do contato com os europeus, dedicavam-se a “mover terra para gerenciar água”.
Isso significa que eles construíram seus próprios pequenos morros largos e de topo achatado – os chamados tesos – para escapar às grandes cheias da região e, ao mesmo tempo, a terra retirada para construir os tesos abria grandes açudes. Essas lagoas artificiais serviam para concentrar os peixes que deixavam os leitos dos rios nas cheias, centralizando a piscicultura.
E essa criação de peixes, por sua vez, garantia recursos para grandes chefes que transformaram os tesos de maior parte numa espécie de castelos acima da linha da água. Uma cerâmica funerária extremamente requintada, bem como lindas tangas de cerâmica decorada, atestam a provável diferenciação social entre esses chefes e os “plebeus” marajoaras por volta do fim do primeiro milênio da Era Cristã.
A pesquisadora também analisou com grande sensibilidade os motivos artísticos da cerâmica marajoara, propondo que eles se consideravam “o Povo da Serpente” por causa do grande peso da figura do réptil em sua arte.
Este vídeo do nosso canal do YouTube conta um pouco do que sabemos sobre a antiga Marajó:
SANTARÉM
A atual cidade do interior do Pará, na região do rio Tapajós, já foi considerada a grande candidata a núcleo “imperial” da Amazônia pré-histórica tardia, graças à sua população relativamente enorme (talvez dezenas de milhares de pessoas) e, de novo, à arte requintada. Análises recentes coordenadas por Denise Schaan, porém, mostraram que havia vários outros núcleos populacionais com produção artística semelhante nas vizinhanças de Santarém, o que sugeriria um conjunto de núcleos aliados com cultura compartilhada, e não um grande centro imperial que exportaria sua cultura Amazônia afora.
GEOGLIFOS DO ACRE
É impossível não ficar intrigado com as grandes figuras geométricas distribuídas pelo chão do Acre e de regiões vizinhas, que só puderam ser vistos agora a partir de aviões, depois que o desmatamento eliminou a floresta nesses lugares. Já há centenas deles catalogados.
Junto com o colega Alceu Ranzi e parceiros da Finlândia, Schaan mostrou que as estrutura geométricas de fato precedem o contato com os europeus e que elas provavelmente eram usadas para fins rituais, porque quase não há sinais de habitações permanentes no perímetro delas. Os pesquisadores também mostraram que essas áreas não foram desmatadas permanentemente: restos vegetais indicam que, em cada geoglifo, a mata voltava em questão de décadas. Podem, portanto, ter sido centros rituais itinerantes na floresta. Esta reportagem minha na Folha explica mais detalhes do trabalho.
Indubitavelmente, ela fará muita falta para a arqueologia brasileira. O site da revista Pesquisa Fapesp fez um belo resumo da trajetória de Schaan, que vale a pena ser lido.
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