Por que a vida das mães humanas é tão complicada?

Reinaldo José Lopes

Por motivos de falta de espaço, um texto que eu havia preparado para uma revista sobre as raízes biológicas da maternidade humana acabou não sendo publicado. É com prazer, portanto, que compartilho essa minha tentativa de resumir o que significa ser mãe na nossa espécie com os leitores do blog. Espero que gostem – o título de trabalho original era algo como “Predestinada a dar à luz?”.

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Qualquer pessoa com um mínimo de bom senso há de concordar que ser mulher e mãe não é brincadeira. Aliás, tem sido quase sempre assim desde antes de existirem mulheres propriamente ditas. A vida dura das genitoras humanas já estava esboçada, em grande medida, centenas de milhões de anos atrás, quando surgiram as diferenças de tamanho e características que ainda distinguem óvulos de espermatozoides.

Pode parecer maluquice, mas é a pura verdade. Essa distinção, que provavelmente é tão antiga quanto a origem dos primeiros animais, é o elemento mais básico que separa um sexo do outro e tem uma série de consequências importantes. A primeira delas: óvulos são proporcionalmente enormes – basta dizer que eles estão entre as raras células que a gente consegue observar a olho nu –, enquanto espermatozoides costumam ser nanicos. Esse tamanhão dos óvulos permite que eles armazenem uma quantidade considerável de nutrientes e outras moléculas essenciais para o desenvolvimento do futuro embrião; por outro lado, suas contrapartes masculinas não passam de micronadadores de longa distância, sem nem um tiquinho de gordura sobrando em sua estrutura celular.

Outra diferença crucial: óvulos são relativamente escassos, em especial entre mamíferos – não é à toa que existe o chamado ciclo menstrual, durante o qual eles são liberados aos pouquinhos (um por um ou, bem mais raramente, dois por vez no caso dos seres humanos) num período específico do mês. Em comparação, a tradicional falta de sutileza masculina fica clara: centenas de milhões de espermatozoides jorrados a cada ejaculação. Chega a dar vergonha.

Questão de economia
E daí? Daí que essas diferenças podem ser traduzidas em linguagem econômica de um jeito bem simples: em geral (grife mentalmente esse “em geral”, porque existe muita variação na natureza, óbvio), óvulos são caros, espermatozoides são baratos. Ou, só pra continuar falando em economês, o investimento reprodutivo que as moças da maioria das espécies fazem tende a ser maior do o que dos rapazes (de novo, em média, com exceções etc.). Isso acontece porque, primeiro, o organismo normalmente gasta mais energia e recursos para produzir células sexuais femininas do que masculinas.

Esse desequilíbrio fica ainda mais claro quando o óvulo fecundado é gestado dentro da barriga da mãe, como acontece com quase todos os mamíferos (embora certos machos também fiquem grávidos, como é o caso dos cavalos-marinhos). Além disso, é relativamente comum que investimentos pesados, daqueles que nem o BNDES toparia financiar, continuem após o nascimento da filharada, com a maior parte ou a totalidade do chamado cuidado parental – amamentar, carregar de lá para cá etc. – ficando nas costas da garota (de novo, exceções não faltam; em muitas espécies de aves, o papai tem grandes responsabilidades nessa esfera). Esse cenário geral vale para uma grande variedade de animais que adotam o cuidado parental – o que, claro, não é o caso dos muitos bichos que apenas botam seus ovos e deixam os bebês se virarem desde o nascimento, como as tartarugas-marinhas – e provavelmente é a regra para os mamíferos desde que eles surgiram, lá se vão mais de 200 milhões de anos.

Tartaruga-marinha: sem cuidado parental, diferentemente da nossa espécie (Crédito: Creative Commons)

Recorde agora que nós somos, no fundo, não mais que um tipo de grande símio africano com postura ereta e pouco pelo. As fêmeas humanas gestam seus bebês por nove meses e, quando os bichinhos nascem, são completamente indefesos, descoordenados e precisam mamar, às vezes por anos a fio. Tudo isso significa que o padrão mais comum de investimento reprodutivo entre outros mamíferos – e as assimetrias e os desequilíbrios entre os sexos que derivam dele – também se manifesta entre nós de certa maneira, o que explica parte importante do peso que recai sobre os ombros das mulheres desde que o mundo é mundo.

Ainda seguindo o raciocínio econômico dos últimos parágrafos, faz sentido que elas sejam significativamente mais seletivas na escolha de parceiros sexuais que os homens. Afinal, na era pré-anticoncepcionais confiáveis (ou seja, basicamente pelos séculos dos séculos, se descontarmos o piscar de olhos entre os anos 1960 e hoje), o espectro de uma gravidez provocada por sexo com o sujeito errado era assunto muito sério. Sempre que podiam escolher com quem gerar bebês, as mulheres tendiam, sabiamente, a não dar bola para qualquer mané (ou elas ou suas famílias, claro, mas temos boas razões para acreditar que uniões arranjadas são coisa recente, dos últimos 10 mil anos ou menos, quando fatores como riqueza e diferenciação social se tornaram comuns pela primeira vez). Homens, por sua vez, tinham incentivos consideravelmente maiores para investir seu suprimento virtualmente ilimitado de espermatozoides da maneira mais ampla possível: o que caísse na rede era peixe, certo?

Bem, mais ou menos – aqui, é preciso não traçar um cenário unilateral demais. Somos uma espécie mais complicada do que os gorilas ou elefantes-marinhos, bichos que formam haréns nos quais um único macho fecunda regularmente diversas fêmeas, enquanto os demais membros do sexo masculino ficam chupando o dedo (de novo, a poligamia parece ser uma invenção recente entre nós). Os pais da nossa espécie são meio preguiçosos, não se pode negar, mas ainda assim até que dão uma mãozinha considerável na criação dos bebês, e o mesmo deve ter valido desde as origens da linhagem humana, segundo a maioria dos antropólogos. Isso, claro, diminui um pouco a avidez deles no que diz respeito a saltar a cerca de casa. Por outro lado, desde que o mundo é mundo, mulheres assumem o risco de se envolver com outro parceiro se perceberem que o atual é um banana ou não dá a mínima para elas – ou seja, no fundo, quando se dão conta de que ele não está colaborando com sua parte no bolão do investimento reprodutivo.

Ressalvas à parte, porém, o fato é que, em média (e considerando que existe uma enorme variabilidade de comportamento de pessoa para pessoa, algo que a gente nunca pode esquecer), as diferenças entre os sexos que estão ligadas a causas biológicas ainda são significativas. E há dados intrigantes que sugerem que as repercussões disso vão além do comportamento sexual, afetando a maneira como as mulheres lidam com os anos de escola ou o mercado de trabalho, por exemplo.

Uma das defensoras dessa visão é a psicóloga do desenvolvimento canadense Susan Pinker, autora do livro “O Paradoxo Sexual”. O primeiro ponto ressaltado por ela é que, em média, não há diferença detectável de inteligência ou habilidade entre homens e mulheres: é basicamente balela sair por aí dizendo que meninas “não têm cabeça para matemática” ou não conseguem se impor quando viram chefes, por exemplo.

Dilema dos extremos
O curioso, no entanto, é que essa grande semelhança média ao que parece esconde uma diferença estatística significativa. No que diz respeito a diversas variáveis comportamentais e mentais, as mulheres têm uma tendência maior a serem relativamente normais e equilibradas, enquanto os homens acabam se espalhando mais para os extremos. Sem meias-palavras, parece que há mais gênios entre os homens, só que também há mais idiotas entre eles (essa segunda parte não deve ser surpresa para as mulheres, aliás). É plausível – embora seja difícil de demonstrar cabalmente – que isso tenha relação com as estratégias evolutivas diferentes de cada sexo: para os homens, valeria mais a pena “apostar” (de forma inconsciente, claro) em comportamentos extremos, que talvez trouxessem mais retorno em quantidade de parceiras sexuais, do que para as mulheres, para as quais táticas mais conservadoras seriam um jeito melhor de fazer desabrochar seu potencial reprodutivo.

Para Susan, isso também ajudaria a explicar por que, apesar do aumento do número de mulheres em posições de destaque em áreas como o direito e as ciências biológicas, elas ainda são minoria em física ou computação (campos que favorecem interesses muito específicos e, por vezes, estreitos) ou no comando de grandes empresas (ocupações nas quais se espera que o sujeito basicamente não tenha mais vida pessoal).

O indefectível Sheldon de “The Big Bang Theory”: exemplo dos extremos masculinos? (Crédito: Divulgação)

Isso quer dizer que as mulheres não são tão duronas profissionalmente? Pode ser justamente o contrário, argumenta ela. “Durante a crise financeira de 2008, mais homens perderam seus empregos e cometeram suicídio, enquanto as mulheres se recuperaram com muito mais facilidade, porque elas tinham uma tendência menor a colocar todos os seus ovos no mesmo cesto. Enquanto muitos homens trabalhavam 70 horas semanais num emprego único que envolvia um só conjunto de habilidades, elas tinham dois trabalhos de meio período, em ramos como serviços ou educação, que não fecham vagas com tanta facilidade”, diz Susan. Faz sentido imaginar que há alguma ligação entre tudo isso e a responsabilidade biológica que a mulher assume com a cria. Aliás, há alguns indícios de que o cérebro feminino lida melhor com o “multitasking”, a capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo, e que isso tem relação com o efeito dos hormônios femininos sobre o sistema nervoso.

Será que tudo isso significa que exigir participação igual das mulheres em todas as áreas do conhecimento e do mercado de trabalho é utópico e até contraproducente, gerando um conflito desnecessário entre os sexos? Bem, a coisa é complicada. De um lado, ignorar a influência da biologia sobre tudo o que nós somos equivale a tapar o Sol com a peneira. De outro, biologia é importante, mas não é destino escrito nas estrelas – do contrário muita gente lendo esse texto teria morrido na infância por causa de infecções bobas que dizimavam as pessoas antes da invenção dos antibióticos. Talvez a maioria das mulheres continue a não se empolgar com a ideia de trabalhar como mecânica de caminhões ou de liderar uma multinacional, mesmo que as portas dessas carreiras estejam totalmente abertas para elas – e tudo bem, ora: a liberdade de escolher também deveria valer para quem não vê problema em seguir o caminho que parece ser o mais natural. Tudo bem, repito, desde que a gente não esqueça que pessoas são indivíduos, não médias populacionais: algumas mulheres (talvez a minoria?) escolherão caminhos que veríamos como “masculinos” – e não serão menos femininas, ou menos humanas, por causa disso. Nenhuma das duas possibilidades é motivo para a gente ficar arrancando os cabelos.

Por outro lado, não há motivo para não repensarmos o que entendemos por “sucesso” ou “liderança”, hoje com base em critérios tradicionalmente masculinos. Por que diabos uma alta executiva ou uma professora universitária de renome internacional deveriam ser forçadas a ficar longe de seus filhos, ou até se sentirem pressionadas a não formar uma família, para conseguir cumprir o papel tradicional de escravo do trabalho? Por que não criar incentivos para que empresas e órgãos governamentais deem mais espaço para creches de qualidade, horários flexíveis e “home office” (o popular trabalho em casa)? Medidas como essas podem muito bem criar ambientes mais equitativos e recompensadores pra todos, homens e mulheres. O escriba que vos fala sabe bem o que é isso: abri mão de ser editor de Ciência na Folha para morar no interior de São Paulo com a minha família e poder ver meus filhos todo santo dia. Não acho que eu seja “menos homem” por causa disso. Diferenças biológicas não deveriam ser vistas como camisas-de-força.

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