João Zilhão, o português paladino dos neandertais, fala à Folha
Costumo conversar com o arqueólogo português João Zilhão faz mais ou menos 15 anos. Apaixonado, articulado, extremamente lúcido e combativo, Zilhão teve peito para remar contra o corrente durante algumas décadas, na época em que o consenso entre os especialistas em evolução humana era de que os neandertais, nossos primos europeus extintos, eram muito inferiores a nós do ponto de vista comportamental e jamais poderiam ter se miscigenado com os primeiros humanos modernos a deixar a África.
Bem, Zilhão riu por último, não apenas com a comprovação genética de que houve, de fato, hibridização entre Homo sapiens e neandertais como por sua descoberta mais recente: exemplares inequívocos de arte produzida por esses humanos arcaicos nas cavernas da Espanha. Só agora tive tempo de publicar a íntegra da entrevista que ele me concedeu na época dessa publicação. Apreciem o modo “full pistola” do pesquisador, como diz o vulgo.
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1)O sr. vê algum significado no fato de esses exemplos de arte neandertal descobertos por sua equipe não serem “não figurativos”, ou seja, sem desenhos realistas, por falta de palavra melhor?
Nenhum significado em especial, a não ser que as primeiras formas de representação material de símbolos talvez tenham sido de tipo abstrato/geométrico. Haverá seguramente quem venha dizer “Ah! Mas não pintavam figuras, logo não eram tão evoluídos como nós!” Bastam dois dedos de testa para ver que é um argumento absurdo. Será que a pintura realista de um cavalo é mais “complexa” ou “avançada” do que a representação do mesmo cavalo através da conjugação dos símbolos lineares “c”, “a”, “v”, “a”, “l” e “o”? Eu diria que é ao contrário…
2)Temos visto datações mais antigas de H. sapiens em lugares como o monte Carmelo, em Israel, além da proposta de uma origem um pouco mais antiga da espécie por volta de 300 mil anos no norte da África. Isso pode abrir uma brecha para alguém postular uma presença de H. sapiens mais recuada também na Europa, se a pessoa for uma defensora empedernida de que só nossa espécie tinha comportamento simbólico, ou ninguém iria tão longe, na sua opinião?
Posso responder a isso de três maneiras diferentes, escolha a que mais goste, todas são válidas:
1) Esse alguém também pode postular que estas coisas foram feitas por marcianos, não pode? E eu posso provar que não? Não, não posso. Da mesma maneira que, se alguém me diz, “Você pode provar que Deus não existe? Não pode, pois não? Logo, Deus existe”. É a lógica do pensamento religioso, não é a lógica do pensamento científico.
2) Há mais de 150 anos que se faz arqueologia paleolítica na Europa. Há milhares de jazidas datadas do período entre 300.000 e 40.000 anos, nas quais se descobriram milhares de restos neandertais pertencentes a mais de 500 indivíduos diferentes distribuídos de norte a sul e de oeste a este (da Bélgica ao sul de Itália, de Portugal ao Altai), e zero, repito, zero, restos de “modernos”. Não é viés de amostragem.
3) Esse alguém tem toda a razão! É absolutamente certo que a principal conclusão destes resultados é que, entre 300.000 e 40.000 anos a Europa estava habitada pelo Homo sapiens. Nuance: uma variante (ou “raça”, se quiser) de Homo sapiens a que coloquialmente chamamos neandertais.
3)Apesar da solidez das evidências apresentadas pelo sr., também dá para imaginar que alguns continuarão dizendo: “Mesmo com comportamento simbólico e arte, os neandertais em sua maioria desapareceram, logo os H. sapiens tinham algo, do ponto de vista cognitivo, que os neandertais não tinham”. Como escapar desse tipo de raciocínio?
Respondendo “não sejam ‘neandertais’”? … Ou, havendo paciência, esclarecendo que também desapareceram os Vikings da Groenlâdia, os Selknam/Ona da Terra da Fogo, para já não falar do trabalhinho que os madeireiros e os garimpeiros da Amazônia vêm fazendo com as populações indígenas. Muitas já desapareceram, outra vão desaparecer: porque eram/são cognitivamente inferiores? Por acaso (ou não?) era essa a explicação que davam os poderes coloniais oitocentistas para justificar a expropriação/extermínio dos povos indígenas. São atrasados, é o destino que merecem… E, já agora, os neandertais não “desapareceram” nem se “extinguiram”, foram absorvidos ou assimilados, como o demonstra o fato de 50-60% do seu patrimônio genético ainda se poder encontrar entre nós, 40.000 anos depois.
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