Biólogo e historiador da ciência fala sobre nova edição de “A Origem das Espécies”
Temos nova e caprichada edição brasileira do grande clássico de Darwin, “A Origem das Espécies”. Um de seus diferenciais é ter sido traduzida diretamente da primeira edição inglesa, conforme expliquei em reportagem recente nesta Folha. Abaixo, compartilho a íntegra da conversa que tive com o professor Nélio Bizzo, biólogo e especialista em ensino e história da ciência da USP, sobre a edição – Bizzo foi responsável pela revisão técnica, pelo prefácio e pelas notas (muito iluminadoras, por sinal) do livro.
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Uma coisa que salta aos olhos no livro é o fato de que Darwin aceita as ideias de Lamarck sobre uso e desuso, coisa que pareceria uma maluquice para quem se lembra das aulas de biologia do ensino médio, nas quais se traça uma oposição total entre os dois. Como entender isso?
A oposição que se construiu entre Darwin e Lamarck baseada no papel do uso e desuso das partes e seus efeitos hereditários não tinha fundamento nos escritos nem de Darwin, nem mesmo de Lamarck. Na verdade, como era de se esperar, é preciso ler com muito cuidado textos escritos há mais de 150 anos. Como escrevo no prefácio do livro, preparando o leitor, a preciosidade desta primeira edição não está na literalidade de cada palavra escrita, mas sim na maneira original como Darwin articula fatos bem conhecidos à época e lhes dá uma interpretação totalmente nova.
Um contraste que vejo entre Darwin e outros pensadores do século 19 cujas ideias não resistiram aos testes empíricos é o grande cuidado com que ele coletou enorme variedade de fatos para apoiar suas hipóteses. É por isso que sua obra ainda tem permanência tão forte?
Sua pergunta, é uma hipótese inquietante, e que, de certa forma, se alinha com aquilo que Darwin dizia fazer: juntar muitos fatos e deixar que eles fizessem aflorar uma teoria, dentro da tradição de Francis Bacon. Mas há problemas nessa “geração espontânea” de teorias, a começar do que chamamos fatos. Muito daquilo que Darwin entendia como fato – portanto uma realidade tangível e indiscutível – já não é mais visto assim.
Ele fala, por exemplo, no capítulo 5 (Leis da Variação), do famoso híbrido de Lorde Morton, que havia relatado, numa reunião da Royal Society em 1821, o cruzamento de um macho da zebra quaga com uma égua castanha, a qual, em data muito posterior, havia cruzado com um garanhão branco (Darwin inclusive se equivoca ao dizer que era negro, mas isso não importa). O filhote deste cruzamento teria nascido com as listras nas pernas, inexistentes no pai, mas que seriam “resíduos” do parceiro do cruzamento anterior, supostamente “resíduos” de sua herança. Esse “fato” tinha causado grande impacto, e, mais de 30 anos depois, ainda era tomado como “fato” – e não apenas por Darwin – o que traria problemas até na partição de heranças! Vemos aí como os fatos não têm estatuto estático e permanente.
Pois bem, não creio que se possa traçar uma distinção tão clara entre ideias e fatos; o que Darwin fez foi dar uma nova interpretação a uma grande quantidade de fatos bem estabelecidos, inserindo-os em um quadro teórico amplo e coerente. Muitos desses fatos haviam sido descobertos inclusive por pessoas que se opunham frontalmente ao pensamento evolucionista. Eles mesmos, de certa forma, chancelavam uma teoria da qual discordavam profundamente.
Ao mesmo tempo, algumas coincidências aumentaram muito o interesse do público pela questão da origem do ser humano. Por exemplo, zoológicos de muitos lugares do mundo, e não apenas na Europa e Estados Unidos, passaram a expor orangotangos e chimpanzés, o que trouxe grande alvoroço diante de sua grande semelhança conosco. O diretor do primeiro zoológico de Buenos Aires, Eduardo Holmberg, foi um darwinista de primeira hora que investiu nesse tipo de exposição.
Por que vale a pena dar atenção especial à primeira edição do livro, se comparada às outras cinco que vieram depois?
Não creio que uma edição seja “melhor” do que outra. O fato é que a primeira edição tem o pensamento do autor livre de influências das consequências de seu lançamento. A partir da segunda edição há modificações, na forma de textos inseridos e retirados – e correções – importantes, mas entendê-las requer estudos paralelos que o leitor comum talvez não tenha interesse em realizar. Algumas retiradas são lamentáveis, como o cálculo de 306 milhões de anos de uma certa formação geológica, que desapareceu já na segunda edição. Outras são circunstanciais, como a retirada do trecho que fala taxativamente que sua teoria explicaria as diferenças das raças humanas. Por fim, algumas inserções são paradoxais, como a epígrafe de um teólogo anglicano, Joseph Butler, que falava do “design inteligente”, em um livro de 1736, e que permaneceu na primeira página de todas as demais edições!
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