Um guia para entender as civilizações perdidas da Amazônia

Reinaldo José Lopes

Pois é, “civilizações”, no plural. Arqueólogos do Brasil e do exterior estão mostrando que o passado da Amazônia foi muito mais complexo do que se imaginava até poucas décadas atrás. Escrevi um resumão desses achados fascinantes para a revista Aventuras na Históriaque também serve de aperitivo para meu livro “1499, o Brasil Antes de Cabral” (disponível na Livraria da Folhaentre outros lugares, por um precinho camarada). Confira a reportagem abaixo — e, se possível, o livro também!

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O paulista Antônio Pires de Campos era um sujeito esquisito: um bandeirante que sabia escrever, e até bem. Em 1723, ele pôs no papel um relato sobre suas aventuras em Mato Grosso, nas quais chegou até as cabeceiras do rio Tapajós, incluindo uma passagem deslumbrada sobre a região que apelidara de “Reino dos Parecis”. Vale a pena lê-la:

“É esta gente em tanta quantidade, que se não podem numerar as suas povoações ou aldeias, muitas vezes em um dia de marcha se lhe passam dez e doze aldeias (…) estes todos vivem de suas lavouras, no que são incansáveis, e as lavouras em que mais se fundam são mandiocas, algum milho e feijão, batatas, muitos ananases, e singulares em admirável ordem plantados (…) muito asseados e perfeitos em tudo que até as suas estradas fazem muito direitas e largas, e as conservam tão limpas e consertadas que se lhe não achará nem uma folha.”

Em 27 de março deste ano, arqueólogos do Brasil e do Reino Unido publicaram dados na revista científica Nature Communications mostrando que não, Pires de Campos não tinha tomado algumas cachaças a mais quando enxergou esse cenário de organização agrícola quase alemã em plena Amazônia. Imagens de satélite e escavações permitiram que os pesquisadores identificassem 81 sítios arqueológicos até então desconhecidos no Alto Tapajós (um pouquinho ao norte da região visitada pelo bandeirante). As aldeias dessa região, provavelmente construídas alguns séculos antes do contato com os europeus, abrigavam uma população combinada que ficaria entre 500 mil e 1 milhão de habitantes, calculam eles.

Os povoamentos, que chegavam a ocupar até 20 hectares (cada hectare corresponde à área de um campo de futebol) eram circulares, cercados por valas e diques defensivos, possivelmente completados com muralhas de troncos de madeira. Monumentos feitos com montes artificiais de terra (chamados de mounds, em inglês) estavam presentes em várias das aldeias, assim como estradas.

As descobertas são importantes, mas não passam de uma pecinha num quebra-cabeças que está ficando cada vez mais coerente conforme as pesquisas arqueológicas se intensificam na Amazônia. “O mais importante é que os nossos dados fecham um buraco no mapa”, diz Jonas Gregorio de Souza, pesquisador brasileiro da Universidade de Exeter (Reino Unido) que é um dos autores do novo estudo. De fato, super-aldeias que mais pareciam cidades foram identificadas na década passada a leste dos novos achados, no Alto Xingu; a oeste, no Acre, já foram achados mais de 500 geoglifos – desenhos geométricos no chão que, ao que tudo indica, são os restos de centenas de centros cerimoniais pré-colombianos.

Repare que todos os complexos arqueológicos que citei até agora ficam na periferia sul da região amazônica. Há achados igualmente intrigantes na calha principal do rio Amazonas e de seus afluentes, em lugares como a ilha de Marajó, a região de Santarém (PA) e a Amazônia Central, perto de Manaus e do célebre “encontro das águas” dos rios Negro e Solimões. Embora a presença de amazonas de verdade (as mulheres guerreiras da mitologia grega, que extirpavam um de seus seios para usar melhor o arco e só se encontravam com homens para fins reprodutivos) muito provavelmente seja fruto da imaginação hiperativa de frei Gaspar de Carvajal, dominicano espanhol que foi o primeiro cronista europeu a atravessar a região em 1542, muitos outros dados relatados por Carvajal e outros autores dos primeiros séculos são verdadeiros. Cheia de gente e de monumentos, culturalmente vibrante e economicamente dinâmica: essa era a Amazônia pré-colombiana.

Tangas e cobras

O exemplo mais bem estudado dessas civilizações amazônicas talvez seja o da região leste da ilha de Marajó. Uma série de acasos geográficos fez com que essa área fosse repleta de campos alagáveis que lembram mais o Pantanal do que a imagem que normalmente temos da Amazônia. Mais ou menos a partir do ano 500 d.C., os moradores da região desenvolveram um sistema de construção de mounds (conhecidos por lá como “tesos”) e de represas que lhes permitia escapar enxutos à fase das cheias, de janeiro a junho, e controlar o suprimento de peixes que saíam do curso normal dos rios para desovar durante a inundação.

Tudo indica que, no alto dos tesos, desenvolveu-se uma cultura aristocrática baseada no controle dos recursos pesqueiros. A arte funerária em cerâmica feita para os senhores de Marajó é uma das mais requintadas das Américas, com motivos estilizados da fauna – em especial as curvas e as escamas de serpentes como a sucuri. Tangas de cerâmica com diferentes decorações parecem ter sido usadas em cerimônias ligadas aos diferentes estágios da vida feminina, levando em conta a simbologia da fertilidade nesses desenhos. A disposição geográfica dos mounds marajoara parece ter sido cuidadosamente planejada para proteger certos tesos maiores, que seriam centros cerimoniais e de moradias aristocráticas, e cercar as represas nas quais alevinos eram criados.

Subindo o rio, nas regiões das atuais Santarém (mais a leste) e Manaus (mais a oeste), os últimos séculos antes da chegada dos europeus viram um grande crescimento demográfico, a intensificação da atividade agrícola e, principalmente, do uso dos ricos recursos pesqueiros amazônicos. Santarém, em particular, tinha “complexidade e escala urbanas”, segundo a arqueóloga americana Anna Roosevelt (sim, parentes daqueles Roosevelt presidenciais), da Universidade de Chicago em Illinois. Seriam 15 quilômetros quadrados de área construída, com a produção intensiva de cerâmica ritual e dos famosos muiraquitãs, amuletos de pedra semipreciosa esverdeada (muitas vezes no formato de anfíbios) que circulavam por boa parte da América do Sul e até pelo Caribe como objetos de alto valor – mal comparando, como se fossem iPhones mágicos.

Mas, por enquanto, as marcas mais impactantes da presença humana na floresta vêm do Alto Xingu. Michael Heckenberger, antropólogo da Universidade da Flórida em Gainesville, junto com Carlos Fausto e Bruna Franchetto, do Museu Nacional da UFRJ, mostraram que, em primeiro lugar, havia cerca de dez vezes mais povoados indígenas na região antes do século 16 e que, de quebra, as maiores entre essas aldeias eram dez vezes mais populosas que suas equivalentes modernas, chegando a ter milhares de habitantes, similares a pequenas cidades medievais ou da Grécia Antiga.

Dados de satélite mostram estruturas cuidadosamente planejadas ordenando a antiga paisagem do Alto Xingu. As maiores aldeias, que provavelmente eram centros religiosos com até dois “terreiros” para festas sagradas, serviam como ponto de partida para uma rede de estradas que as cortava nos sentidos leste-oeste, norte-sul e direções secundárias em ângulos de 45 graus. Tais estradas chegavam a ter 50 metros de largura, estendiam-se por vários quilômetros e contavam com pontes e “acostamentos” feitos com terra. Esses grandes povoados contavam ainda com muralhas de toras de madeira, controlavam o cultivo de grandes lavouras de mandioca e pomares de pequi e, tal como em outros lugares da Amazônia, lagoas artificiais para a prática da piscicultura e a criação de tartarugas, cobiçadas por sua carne e seus ovos. Levando em conta todas essas evidências, estima-se que a população amazônica na época do contato com os europeus pudesse chegar a 8 milhões de habitantes (conta que inclui as áreas do ecossistema nos países vizinhos do Brasil). Como comparação, o Brasil só chegou perto da casa dos 10 milhões de habitantes no fim do século 19.

Sementes de línguas

Uma pista crucial da importância da Amazônia como berço de civilizações vem da linguística. Entre os povos nativos da América do Sul, a diversidade de idiomas é a regra. Nosso pedaço do continente tem cerca de uma centena de famílias linguísticas, o que dá pouco menos de um quarto do total mundial. Desse conjunto, nada menos que 50% corresponde a famílias de um único membro, as chamadas línguas isoladas, que não possuem parentes conhecidos.

E daí? Bem, a comparação com o Velho Mundo pode ser instrutiva nesse aspecto. Na Europa inteira, há uma única língua isolada (o basco, na Espanha), e quase todas as falas por lá descendem do tronco linguístico indo-europeu, o qual, como o nome indica, também ocorre na Índia, no Irã e em outros lugares da Ásia. Acredita-se que as línguas indo-europeias tenham alcançado tamanho sucesso graças a alguma vantagem competitiva de que gozavam seus falantes originais – hoje, a hipótese mais aceita é a de que esse “algo a mais” em favor deles tenha sido a domesticação do cavalo, conferindo aos primeiros indo-europeus o equivalente pré-histórico de tanques de guerra.

Expansões linguísticas similares podem ser vistas no Extremo Oriente – caso dos vários dialetos chineses, falados numa área gigantesca por mais de 1 bilhão de seres humanos – e na África, onde os idiomas bantos se espalham de Camarões à África do Sul. Nesses dois exemplos, a vantagem de tais grupos parece ter vindo do desenvolvimento de pacotes agrícolas pré-históricos muito eficientes, que permitiram que os ancestrais dos Han (grupo étnico dominante da China) e dos bantos se multiplicassem mais do que seus concorrentes, derrotando e/ou assimilando as populações que estavam no seu caminho.

A diversidade linguística sul-americana indicaria que nada parecido jamais aconteceu por aqui? Mais ou menos. Por um lado, de fato, nenhum grupo talvez tenha tido vantagens competitivas tão avassaladoras quanto os indo-europeus. Mas algumas famílias linguísticas, por outro lado, têm distribuições que abarcam milhares de quilômetros e dezenas de idiomas. “Quando a gente olha com mais calma, percebe que ocorreram expansões sul-americanas que não ficam nada a dever a esses processos do Velho Mundo”, diz Jonas de Souza. E é nesse ponto que a coisa fica interessante: quase todos esses grupos têm origem amazônica.

O mais famoso é um velho conhecido de qualquer pessoa no Brasil: os Tupi e Guarani, que se espalhavam por quase toda a costa brasileira (e um bom pedaço da uruguaia), bem como por pedaços substanciais do Paraguai e trechos da Amazônia, no começo do século 16. É praticamente certo, com base nos dados de diversidade linguística, que esse grupo tenha surgido na atual Rondônia alguns milênios antes do nascimento de Cristo.

Já as etnias da família linguística Aruak (que pode ter surgido no noroeste da Amazônia ou em outros locais da bacia) têm distribuição geográfica ainda mais ampla, da Bolívia ao Caribe. Os Taino, primeiros indígenas com quem Colombo topou em 1492, pertenciam a esse grande grupo; aliás, um estudo genético recente mostrou que eles eram parentes próximos dos Palikur, uma tribo que ainda vive no Amapá. E, a propósito, os mares caribenhos ganharam esse nome graças aos Carib, membros de outra família linguística de ampla distribuição e raízes amazônicas que também acabou navegando para a América Central e colonizou certas ilhas por lá. As alianças multiétnicas que hoje caracterizam o Alto Xingu envolvem principalmente grupos Aruak e Carib; acredita-se que um sistema parecido com o que existe hoje, mas numa escala muito maior, teria sido o responsável pela criação dos monumentos xinguanos da Idade Média, talvez sob coordenação original dos Aruak, grupo com tradição em comércio de longa distância e diplomacia em outros pontos da bacia amazônica.

A única grande família linguística nativa do atual Brasil que não tem essa associação próxima com a Amazônia é a Macro-Jê, mais típica da região central do país e de áreas do interior das regiões Sul e Sudeste (exemplos são, respectivamente, os Xavante e os Kaingang). “Mesmo assim, tenho colegas que trabalham com linguística que enxergam a maior diversidade Macro-Jê na fronteira sul da Amazônia”, aponta Souza – e essa é uma pista crucial a respeito do local de origem de uma família de idiomas: em geral, a área com a maior diversidade costuma ser o berço de um grupo, basicamente porque ele existiu ali por mais séculos e, com isso, teve mais tempo para se diversificar.

Considerando o que sabemos sobre outras expansões linguísticas mundo afora, faz sentido imaginar que as etnias amazônicas saíram na frente graças às suas práticas agrícolas, ao menos em parte. E, de fato, várias plantas importantes parecem ter sido domesticadas inicialmente na Amazônia ou em regiões próximas, espalhando-se de lá para o resto do continente. A lista inclui a mandioca, o abacaxi, o cacau, o amendoim e uma série de palmeiras frutíferas, como a pupunha – no total, calcula-se que mais de 80 espécies amazônicas acabaram sendo adaptadas para o uso humano. Além disso, o milho, vindo do México, obrigatoriamente teve de passar pelo território amazônico antes de chegar às demais regiões sul-americanas. Com tanta diversidade nas mãos, os grupos que deixaram o berço amazônico carregavam consigo um pacote tecnológico adaptado a diversos ambientes de floresta tropical – o que teria ajudado os Tupi e Guarani a colonizar regiões de mata atlântica, análogos costeiros da Amazônia, argumenta Souza.

Mistérios do colapso

Explicar o abismo entre o passado revelado pela arqueologia e o chamado presente etnográfico – ou seja, as condições relativamente modestas das sociedades amazônicas nos últimos séculos – envolve certa dose de conjecturas. Mais uma vez, é importante não enxergar a Amazônia como um único grande bloco civilizacional: até onde sabemos, cada região tinha sua própria dinâmica econômica e política, e não faz sentido esperar que todas caminhassem juntas.

Em Marajó, por exemplo, os aristocratas construtores de tesos parecem ter deixado de controlar os recursos pesqueiros e a vida ritual do leste da ilha cerca de dois séculos antes do primeiro contato com os europeus. Nessa época, cessam tanto o planejamento de novas estruturas monumentais quanto a produção em massa da arte marajoara “clássica”. Por quê?

Não está claro – há quem fale em flutuações climáticas que poderiam ter alterado o regime das cheias e, portanto, o controle dos recursos ligados a esses eventos do qual dependiam as chefias de Marajó. Mais ou menos na mesma época, as pistas trazidas pela cerâmica apontam para a chegada de forasteiros de idioma Aruak à ilha, o que pode ter ocasionado conflitos (apesar da fama de bonzinhos dos canoeiros Aruak) e alguma forma de caos político. Por outro lado, alguém mais cético e mal-humorado poderia observar que mudança climática e tribos invasoras são os mais tradicionais curingas da pesquisa arqueológica, invocados de modo meio genérico toda vez que algum processo catastrófico misterioso precisa ser explicado. Sem mais e melhores dados, fica difícil apontar o que é mais provável.

Da mesma forma, o trabalho de arqueólogos como Eduardo Góes Neves, da USP, indica que o auge das grandes aldeias da Amazônia Central veio pouco depois do ano 1000 do nosso calendário. Nos séculos seguintes, há sinais sinistros de conflito e de declínio: a área ocupada em alguns sítios arqueológicos encolhe, outros ganham paliçadas, valas e até sistemas defensivos que tentam transformar a ponta de uma península em ilha, separada da terra firme. Para Neves e seus colegas, em vez de uma progressão constante rumo a uma complexidade social cada vez maior, várias regiões da Amazônia passavam por processos de natureza mais cíclica, alternando crescimento populacional e centralização política com fases de população menor, mais dispersa e mais igualitária.

Essas ressalvas são importantes, mas o fato é que, no momento do contato com os europeus, todas as evidências apontam para uma região amazônica com população relativamente densa em quase todos os lugares. Como explicar, então, as transformações que levaram à feição atual das etnias da Amazônia, com suas sociedades relativamente móveis, igualitárias e de pequena escala? Se o que vemos em outros lugares das Américas pode servir de guia, a resposta para o enigma é simples: doenças infecciosas. Com efeito, um paradoxo muito similar ao amazônico também ocorreu no vale do rio Mississipi, nos atuais Estados Unidos. Os relatos de exploradores espanhóis do século 16, confirmados pela arqueologia, também falam em grandes populações e monumentos – muitos deles são mounds, vagamente similares aos de Marajó –, mas o cenário muda radicalmente do século 18 em diante, com o desaparecimento quase completo da monumentalidade e das organizações sociais complexas. A ideia é que os primeiros contatos com os invasores ibéricos, em ambos os lugares, teriam sido suficientes para desencadear a transmissão de micróbios do Velho Mundo contra os quais não tinham defesas biológicas.

Sarampo, varíola, gripe e outros assassinos microscópicos dizimaram os povos que encontraram as primeiras expedições – e também outros grupos que nem chegaram a ver um europeu, mas tinham contatos comerciais, diplomáticos ou bélicos com os visitados por espanhóis ou portugueses. Esse telefone sem fio epidemiológico está comprovado, aliás, no caso mais documentado do Império Inca. Antes que Francisco Pizarro e seu bando de aventureiros espanhóis iniciasse a conquista desse Estado andino, uma epidemia de varíola vinda dos territórios já conquistados pela Espanha ao norte matou milhares de habitantes dos domínios incas, incluindo possivelmente o próprio imperador Huayna Capac e outros membros da família real.

Algo muito parecido deve ter acontecido na Amazônia brasileira. É inegável que os povos indígenas atuais são herdeiros de milhares de anos da adaptação humana à floresta, mas a ironia é que suas sociedades atuais também podem ser descritas como sobreviventes de um apocalipse em miniatura. Ainda vai ser preciso muito trabalho para recuperar um quadro mais completo do mundo que esses povos perderam depois de 1500.