Brasileiro cria ‘minicérebros’ com gene de neandertais nos EUA

Reinaldo José Lopes

É difícil evitar o clichê: parece coisa de ficção científica. Hoje, já temos informações detalhadas sobre como era o genoma dos neandertais (Homo neanderthalensis), primos de primeiro grau dos seres humanos de hoje que sumiram há cerca de 30 mil anos. Também sabemos como usar células-tronco para produzir versões em miniatura e muito simplificadas do córtex cerebral (a camada mais externa do cérebro). E sabemos como alterar genes com relativa precisão. Junte tudo isso e você tem o quê? “Minicérebros neandertalizados”, propõe um pesquisador brasileiro que trabalha nos EUA.

Isso significa que agora “temos cérebros de neandertais em laboratório”? NÃO, definitivamente não. O trabalho de Alysson Muotri, biólogo paulista que hoje é professor da Universidade da Califórnia em San Diego, investiga apenas um pequeno aspecto de como seria o sistema nervoso de nossos parentes arcaicos — mas ainda assim é interessantíssimo, claro.

Recapitulando, a coisa funciona da seguinte maneira:

1)Muotri e seus colegas fizeram uma comparação da “biblioteca” de genes de humanos e neandertais. A semelhança entre os dois genomas é altíssima, de modo geral, mas aqui e ali existem diferenças, incluindo em trechos do DNA que estão associados ao desenvolvimento do sistema nervoso. Os pesquisadores pinçaram inicialmente um desses genes, o NOVA1. Ele contém a receita para a produção de uma proteína que se liga ao RNA — a molécula-irmã do DNA — apenas em neurônios. Como a presença do RNA é uma medida de como e quando genes estão mesmo “ativos” nas células, a proteína do NOVA1 na verdade atua como uma espécie de chave-mestra para vários outros genes, daí o interesse por ela. E o interessante é que a diferença entre os genomas neandertal e humano nesse gene é de apenas UMA letra química de DNA. Fácil de mexer, em tese.

2)Eles empregaram a técnica de edição de genomas Crispr para fazer justamente essa alteração em células derivadas da pele de pacientes humanos modernos normais (até porque não tinha pele de neandertal pra isso, certo?).

3)As alterações, além de dar a essas células a versão neandertal do gene, também as reverteram a um estudo similar ao embrionário, que permitiu que o desenvolvimento delas fosse direcionado para a formação de células do sistema nervoso.

4)Isso feito, eles usaram técnicas de laboratório bem estabelecidas para fazer com que elas formassem os tais minicérebros ou organoides cerebrais — “neanderoides”, segundo Muotri. Esses órgãos de laboratório possuem uma série de propriedades interessantes, entre as quais a possibilidade de simular as conexões entre as células, ou seja, como elas “conversam”.

5)E, de fato, há uma série de diferenças curiosas entre os minicérebros dos neandertais e os gerados a partir de células humanas. Até o formato é um pouco diferente — e a interação entre os neurônios com o gene neandertal é menos intensa do que entre as células humanas.

Vale ressaltar, e muito, que isso é só o começo. Alterar um único gene está muito, muito longe de nos dizer qual seria a diferença essencial entre neandertais e humanos, ou “o que nos faz humanos”, como diriam os mais grandiloquentes. As condições dos minicérebros em laboratório são muito úteis, mas estão muito distantes de simular um cérebro vivo real. De qualquer modo, podemos aprender muito com eles.