Joshua Greene e o cérebro moral: entrevista na íntegra
Saiu no caderno Ilustríssima deste domingo minha entrevista com o psicólogo e filósofo americano Joshua Greene, que tem feito uma junção provocativa de psicologia evolutiva, neurociência e utilitarismo para tentar achar novos caminhos para o raciocínio moral que escapem das divisões tribais. É com prazer que divido com vocês a íntegra da entrevista abaixo. Boa leitura!
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O americano Joshua Greene começou sua carreira científica tentando entender o que acontecia no cérebro das pessoas diante de um dilema inusitado: usar ou não usar um rapaz muito gordo como breque de bonde?
Ocorre que esse tipo de cenário, por mais estapafúrdio que pareça, virou uma das bases do estudo do funcionamento das nossas noções de certo e errado, em grande parte graças a Greene e seus colegas. Nos dois principais estudados pelo psicólogo e filósofo, o corpo do pobre sujeito só é prensado pelo bonde porque tem o tamanho exato para impedir que o veículo mate outras cinco pessoas. Troca-se uma vida por cinco, portanto.
Greene e seus colaboradores descobriram que as pessoas reagem de modo específico a contextos diferentes desse cenário. É mais fácil que alguém tope sacrificar o pobre obeso se, para isso, tiver de apertar um botão ou uma alavanca para desviar o bonde, mas as pessoas relutam muito em empurrar a vítima na direção do veículo com as próprias mãos, ainda que o resultado de ambas as ações seja o mesmo.
O cérebro levado a imaginar esses cenários reage de forma muito diversa – no segundo caso, ativando áreas ligadas às emoções. Os dados levaram o psicólogo e filósofo da Universidade Harvard a formular suas ideias sobre a origem dual dos nossos sistemas morais: eles teriam uma profunda base emocional, a qual só mais tarde ganha elementos de racionalidade.
Em seu livro “Moral Tribes” (ainda sem versão brasileira), Greene propõe que isso está na raiz de boa parte das desavenças políticas e culturais do mundo moderno. Nossa moralidade emocional funcionaria bem quando lidamos com membros de nossa própria “tribo”, mas patinaria diante de pessoas ligadas a grupos muito diferentes. Para sair desse impasse, ele propõe uma adesão pragmática ao utilitarismo, ou seja, a tentativa de priorizar o mínimo de sofrimento e o máximo de bem-estar para o maior número possível de pessoas. Convidado do ciclo de palestras “Fronteiras do Pensamento”, Greene falou à Folha por telefone durante sua visita ao Brasil.
Folha – É cada vez mais frequente ver cientistas argumentando que, agora que temos grandes avanços na neurociência, na teoria dos jogos, na psicologia evolutiva e em outras áreas, a filosofia está se tornando supérflua ou inútil. O que pensa a esse respeito?
Joshua Greene – Não, a filosofia ainda é muito útil. É claro que ela precisa aprender a incorporar os achados da ciência, mas as descobertas científicas, se vistas de forma isolada, jamais vão ser capazes de lidar com as questões normativas, ou seja, não vão nos dizer o que deveríamos fazer ou não com nossas vidas. A ciência é capaz de nos dizer que tipos de ações têm uma probabilidade maior de produzir esse ou aquele resultado; mas, em última instância, nós é que temos de decidir quais os parâmetros para seguir um curso de ação.
O problema de alguns filósofos morais é que eles ainda tentam enxergar a filosofia como se fosse matemática: vamos ignorar esse monte de fatos bagunçados e tentar obter respostas substanciais a partir do raciocínio puro. Acho que esse projeto está fadado ao fracasso. Temos de seguir adiante incorporando os fatos científicos.
Quando o sr. propõe o “pragmatismo profundo” ou utilitarismo como uma “metamoralidade”, a sensação é que ideias como essa sempre vão ter dificuldades para ser aceitas porque lhes faltam os elementos intuitivos que fazem as pessoas aceitarem outros tipos de princípios morais de modo natural. Há algum jeito de sair desse dilema?
Concordo que não existe nenhuma saída muito fácil. A grande força – e a grande fraqueza – do utilitarismo é que ele vai além da simples intuição. Como explico em meu livro, quando você tem duas “tribos” diferentes com interesses conflitantes, não há como você apelar para as intuições morais delas, que podem ser bem diferentes entre si. Digamos que o utilitarismo é como uma segunda língua que todos nós podemos aprender a falar de um jeito desajeitado.
Não é o idioma no qual nós conseguiríamos expressar naturalmente os nossos instintos morais, mas é algo que podemos acessar se estivermos dispostos a fazer esse esforço, porque todos nos importamos com as consequências das nossas ações. Seria um nível básico de imparcialidade cuja fundação é o fato de que todos temos algum compromisso com a justiça, com a ideia de evitar o sofrimento e buscar a felicidade, mesmo que não tenhamos um sentimento profundo no nosso coração que crie um apego por esse ponto de vista.
Desse ponto de vista, o pensamento religioso, que muitas pessoas associam às bases da moralidade, acaba sempre sendo tribal, independentemente do conteúdo de cada religião específica, na sua opinião?
Todas as religiões têm elementos universais e outros que são típicos de cada tribo. A ideia básica da Regra de Ouro [presente nos ensinamentos de Jesus e Confúcio, por exemplo], “não faça aos outros o que você não quer que façam com você”, ocorre numa variedade muito grande de religiões, por exemplo, e é compatível com uma metamoralidade. O que acaba fazendo muita diferença é: qual o tamanho do seu “círculo de preocupação” em determinada cultura religiosa? Ele se estende apenas aos seus vizinhos e correligionários ou vai mais longe?
Então, a questão não é dizer que a religião é compatível ou incompatível com a metamoralidade, mas perceber que ela pode funcionar como uma espécie de “portal moral” para uma visão mais global. Tenho certeza de que compartilho mais aspectos dessa visão com algumas pessoas profundamente religiosas que conheço do que com outros céticos como eu que acabam adotando uma visão mais niilista e egoísta.
Um fenômeno bastante assustador que aparece às vezes em experimentos na sua área de pesquisa é a chamada punição antissocial, quando os participantes de um experimento aceitam perder recompensas apenas para punir quem segue as regras do jogo. É algo que se manifesta com mais frequência com participantes que são de países desiguais e pouco democráticos. Esse fenômeno poderia se tornar mais comum no mundo?
Essa é uma observação bastante interessante. Só para deixar claro do que estamos falando: nesses jogos de laboratório normalmente cada um dos participantes recebe uma pequena soma em dinheiro e pode investi-la numa espécie de fundo comum ou ficar com o dinheiro para si. O dinheiro investido nesse fundo volta “com juros” ao longo das rodadas do jogo e é dividido igualmente entre eles, então racionalmente seria do interesse de todo mundo fazer o investimento.
Bom, você também tem a opção de gastar parte do seu dinheiro para punir outros participantes, tirando dinheiro deles. Em alguns casos, vemos a chamada punição pró-social, na qual as pessoas estão dispostas a tirar dinheiro do bolso para forçar os colegas a contribuir para o fundo comum, mas também há a punição antissocial, na qual algumas pessoas resolvem punir quem é “bonzinho demais”.
Quando você pergunta para as pessoas que aderem a essa punição social por que elas fazem isso, em geral elas respondem coisas como “Não gosto desse jogo, não gosto que me forcem a seguir essas regras estranhas” – elas tendem a perceber o sistema como algo coercitivo.
É intrigante que o sr. coloque as coisas dessa maneira, porque eu já tinha visto outras explicações segundo as quais a variável-chave seria a confiança – em culturas nas quais as pessoas não confiam nas instituições, elas tenderiam a agir desse modo.
Sim, acho que o que eu disse antes tem mais ou menos o significado. A questão é uma revolta contra o sistema em si segundo o qual as coisas funcionam. Acho que é um fenômeno similar ao que vemos quando as pessoas votam em políticos com retórica violenta, de personalidade antissocial e desonesta, como Donald Trump. O raciocínio é: “Não estou nem aí se essa escolha acabar até me prejudicando, tudo o que eu quero é chacoalhar esse sistema que está me mantendo por baixo”.
Parece haver um consenso de que a desigualdade econômica tem aumentado no mundo todo, inclusive nos países desenvolvidos. Há dados mostrando qual o efeito disso sobre as tentativas de achar um terreno comum no que diz respeito a dilemas morais? Sociedades desiguais são naturalmente mais divididas?
Por si só, uma democracia que continua a ser uma democracia tende a autocorrigir esse tipo de desequilíbrio: existem mecanismos para fazer com que as pessoas que concentram a riqueza em suas mãos acabem revertendo boa parte de seus ganhos em benefício de toda a sociedade. Mas o que acontece é que, ao menos nos EUA, um certo ramo da elite econômica queria achar outra estratégia para manter seus ganhos.
E é óbvio que eles não iam dizer na cara de todo mundo “Vamos diminuir os impostos pagos pelas grandes empresas e pelos ricos e gastar menos com serviços que beneficiam a população” – não seria uma plataforma muito popular. Eles precisavam de outra coisa para fazer com que as pessoas embarcassem no projeto deles, e por isso têm apelado para preconceitos tribais naturais: o problema são os mexicanos, são os muçulmanos, são os elitistas esnobes querendo tirar o seu suado dinheirinho de americano comum.
De modo geral, o sr. concorda com a ideia de que tem havido bastante progresso moral no mundo, conforme argumentam pesquisadores como o psicólogo Steven Pinker? Temos razões para ser otimistas?
Concordo com a avaliação de Pinker – veja bem, com a avaliação dele, não com as caricaturas que as pessoas às vezes fazem do trabalho dele (risos). A tendência geral é que as coisas estão de fato ficando melhores para a maioria das pessoas – tudo isso é verdade. Agora, também devemos ressaltar que essa jornada é extremamente dolorosa, ainda que não precisasse ser assim. E cada nova tecnologia faz com que os riscos que enfrentamos fiquem mais extremos. Uns poucos erros terríveis podem fazer com que muita gente morra num inverno nuclear ou com armas biológicas contra as quais nosso sistema imune não tem defesa. De qualquer maneira, acho que temos boas razões para sermos otimistas.
Quais são seus próximos grandes projetos de pesquisa ou como escritor?
O que tenho no horizonte é tentar aplicar métodos mais diretos para fazer com que diferentes tribos morais achem pontos em comum e trabalhem juntas. Além disso, no meu laboratório, estamos investigando algumas questões básicas sobre como o pensamento humano funciona – como traduzimos pensamentos em palavras e imagens, por exemplo. O outro lado dessa busca é aprender como aplicar descobertas desse tipo na criação de máquinas que de fato sejam capazes de pensar.
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