Frederico Lourenço e sua tarefa hercúlea de traduzir a Bíblia grega

Reinaldo José Lopes

Os leitores deste blog talvez se lembrem do que já escrevi sobre a tarefa hercúlea do helenista português Frederico Lourenço: traduzir toda a Septuaginta, ou Bíblia grega, para o nosso idioma da forma mais próxima possível do original. Entrevistei-o recentemente sobre a segunda parte dessa obra magna, volume que reúne todos os textos do Novo Testamento que vêm depois dos Evangelhos. Confiram a íntegra do que ele me contou abaixo.

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Darwin e Deus – Como você bem frisa, o corpus paulino [escritos do apóstolo Paulo] domina a parte “não-evangélica” do Novo Testamento. Você acha que o texto de Paulo, confrontado no original, dá alguma informação sobre como ele se “tornou Paulo” do ponto de vista literário? Que tipo de estudo formal ou informal um judeu de fala grega como ele precisava absorver para conseguir escrever como escrevia? Ou é quase impossível saber isso sem cair em especulações malucas?

Frederico Lourenço — O corpus paulino levanta problemas grandes de autoria, pois já desde o século XIX parece impossível a muitos estudiosos que todos os textos atribuídos a Paulo tenham sido escritos pela mesma pessoa. Também dentro de cada epístola se levantam dúvidas quanto à sua organicidade: mais do que uma epístola (se não mesmo todas) resulta de cortes e de colagens feitos em época posterior. O Paulo histórico parece-me ter sido um judeu de língua grega com uma interiorização forte do Velho Testamento em grego.

Você concorda com as propostas de datação muito tardias (século 2) para Lucas e Atos dos Apóstolos, que foram escritos pelo mesmo autor? É que minha impressão é que o consenso do pessoal que trabalha com Jesus histórico é que ao menos o Evangelho dataria da década de 80 do primeiro século, e não consigo imaginar Atos sendo escrito muito tempo depois do Evangelho…

É difícil datar qualquer um dos Evangelhos e também difícil datar Lucas-Atos. Uma datação em finais do século 1 parece-me verosímil, mas considero também relevantes os argumentos dos estudiosos que acham mais provável a datação no século 2.

Ainda sobre Atos, muita gente vê alguns dos discursos do livro (como o de Pedro em Pentecostes e outros) como fontes cristãs anteriores “incrustadas” na narrativa de Lucas, por terem até uma cristologia (ideias sobre a natureza de Jesus) aparentemente mais primitiva que a do Evangelho do próprio Lucas etc. O que você pensa desses trechos?

Um problema de Lucas-Atos é que se trata de um texto que recorre a outros textos. Isso vê-se ao nível dos discursos, que não têm homogeneidade estilística nem teológica. E vê-se também nas famosas secções narradas na 1.ª pessoa do plural, que devem ser importações de outros textos. O nível de escrita oscila de forma surpreendente: sobretudo os discursos atribuídos a Paulo no final do livro misturam frases magnificamente escritas em grego literário com frases muito mais simples.

Cada nova época faz uma leitura diferente do Apocalipse e tenta ver nele sinais dos tempos, previsões etc. Mas todos os especialistas concordam que o livro foi escrito pensando nas condições específicas do culto imperial romano e como ele afetava os cristãos. Você acha que o público original do livro tinha isso muito claramente na cabeça e jamais pensaria no futuro remoto, ou já naquela época o livro era polissêmico o suficiente para permitir uma pletora de interpretações?

O livro permite todas as interpretações, mas os leitores da época que conheciam bem o Velho Testamento em grego leriam o texto à luz desse conhecimento, sobretudo atendendo aos paralelos com Ezequiel. É um texto tão estranho quanto fascinante, que não atingiu facilmente o estatuto canônico que mais tarde lhe foi reconhecido. Foi um texto que me deu especial gosto traduzir. Ao contrário do que dizem outros helenistas, considero a linguagem do livro de Apocalipse muito bem conseguida, atendendo ao efeito pretendido pelo autor.

Finalmente, há quem diga que o livro mais enigmático do Novo Testamento, ao menos em relação a sua autoria, é Hebreus. Traduzi-lo fez o livro parecer menos enigmático ou você continua sem fazer a menor ideia de quem o escreveu e por que o fez, como a maioria de nós?

Devo dizer que, para mim, Hebreus é um texto que não provoca o fascínio que vejo noutros textos do NT. Não me parece que seja possível atribuí-lo a um autor específico. É um texto compreensivelmente valorizado na teologia cristã, mas se nos abstivermos friamente dos constrangimentos da teologia não vejo que o texto atinja de forma convincente o seu propósito de “provar” a obsolescência da religião judaica.