A criação de mitos de J.R.R. Tolkien e C.S. Lewis na Flip
Demorei bastante, mas finalmente consegui colocar no ar a íntegra do áudio da minha participação na Flip deste ano. Meus companheiros de debate foram Samuel Coto, editor das novas traduções da obra de J.R.R. Tolkien na HarperCollins Brasil (para quem não sabe, estou participando dessas traduções), e Cesar Augusto Machado, do canal Tolkien Talk. Confiram abaixo o “videocast” da mesa.
Para os que estão curiosos sobre o poema de Tolkien que li (em parte) e discuti na apresentação, segue abaixo o texto completo da minha tradução, feita originalmente para minha dissertação de mestrado na USP.
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A alguém que disse que mitos eram mentiras e, portanto, inúteis, mesmo se “bafejados através da prata”.
Filomito a Misomito
Você vê árvores, e as chama assim,
“árv’res são “árv’res” e crescem, enfim);
palmilha a terra e com solene passo
pisa um dos globos menores do Espaço:
‘Strelas são ‘strelas, matéria em bola
que em matemático trajeto rola
regimentado, gélido, Vazio,
de átomos morrendo a sangue frio.
Por uma Vontade, à qual nos dobramos
mas que nós só de longe captamos,
grandes processos o Tempo completa
de início escuro a incerta meta;
e em página reescrita sem pista,
de letra e margem vária já revista,
eis multidão de formas infinitas,
negras, belas, frágeis ou esquisitas,
cada qual diversa, mas num só rol
de germe, inseto, homem, pedra e sol.
Deus fez pétreas rochas, arbóreas árvores,
terra térrea, estrelas estelares,
e os homens humanos, que andam no chão
e a quem luz e som causam comichão.
O remexer do mar, vento nos galhos,
relva, vacas mugindo nos atalhos,
trovão e raio, aves a cantar,
limo escorrendo a viver e murchar,
cada qual é registrado e impresso
nas contorções do cérebro em recesso.
Mas “árv’res” só são “árv’res” nomeadas –
e só o foram quando captadas
por quem abriu o hálito da fala,
eco do mundo numa escura sala,
mas nem registro nem fotografia,
sendo risada, juízo e profecia,
resposta dos que então sentiram dentro
profundo movimento cujo centro
é o existir de planta, fera, estrela:
cativos que grade serram sem vê-la,
cavando o sabido da experiência
abrindo o espírito sem consciência.
Grande poder de si mesmos criaram,
e atrás de si os elfos contemplaram
que na forja sagaz d’alma andavam,
luz e treva em teia oculta bordavam.
Não vê estrelas quem não as vê primeiro
qual prata viva explodindo em chuveiro
chama florida sob canção antiga
cujo eco mesmo de longa cantiga
o perseguiu. Não há um firmamento,
só vazio, se não tenda, paramento
por elfos desenhado; não há terra,
se não ventre de mãe que a vida encerra.
Mentiras não compõem o peito humano
que do único Sábio tira o seu plano,
e o recorda. Inda que alienado,
algo não se perdeu nem foi mudado.
Des-graçado está, mas não destronado,
trapos da nobreza em que foi trajado,
domínio do mundo por criação:
O deus Artefato não é seu quinhão,
homem, sub-criador, luz refratada
em quem matiz branca é despedaçada
para muitos tons, e recombinada,
forma viva mente a mente passada.
Se todas as cavas do mundo enchemos
com elfos e duendes, se fizemos
deuses com casas de treva e de luz,
se plantamos dragões, a nós conduz
um direito. E não foi revogado.
Criamos tal como fomos criados.
Sim! Sonhos tecemos para enganar
os corações e o Fato derrotar!
De onde o desejo e o poder pra sonhar,
e as coisas belas ou feias julgar?
Querer não é inútil, nem calor
procuramos em vão – pois dor é dor,
não de ser desejada, mas perversa;
ou ceder a uma vontade adversa
ou resistir seria igual. E o Mal,
desse apenas isto é certo: É o Mal.
Bendito o tímido que o mal odeia,
treme na sombra, e o portão cerceia;
que não quer trégua, e em seu solar,
mesmo pequeno, num velho tear
tece pano dourado à luz do dia
sonhado por quem na Sombra porfia.
Benditos os que de Noé descendem
e com suas arcas frágeis o mar fendem,
sob ventos contrários buscando sé,
rumor de um porto indicado por fé.
Benditos os que em rima fazem lenda
ao tempo não-gravado dando emenda.
Não foram eles que a Noite esqueceram,
ou deleite organizado teceram,
ilhas de lótus, um céu financeiro,
perdendo a alma em beijo feiticeiro
(e falso, aliás, pré-fabricado,
falaz sedução do já-deturpado).
Tais ilhas veem ao longe, e outras mais belas,
e os que os ouvem podem girar as velas.
Viram a Morte e a derrota final,
sem em desespero fugir do mal,
mas à vitória viraram a lira,
seus corações qual legendária pira,
iluminando o Agora e o Que Tem Sido
com brilho de sóis por ninguém vivido.
Quisera com os menestréis cantar
com minha corda o não-visto tocar.
Quisera navegar com os marinheiros
sobre tábuas em montes altaneiros
e viajar numa vaga demanda,
que alguns ao fabuloso Oeste manda.
Quisera entre os tolos ser sitiado,
que em remoto forte, de ouro guardado,
impuro e escasso, recriam leais
imagem tênue de pendões reais,
ou em bandeiras tecem o brasão
fulgurante de não-visto varão.
Não seguirei seus símios progressivos,
eretos e sapientes. Caem vivos
nesse abismo ao qual seu progresso tende –
se por Deus o progresso um dia se emende
e não sem cessar revolva o batido
curso sem fruto com outro apelido.
Não trilharei sua rota sem vacilo,
que a isto e aquilo chama isto e aquilo,
mundo imutável onde não tem parte
criadorzinho ou de criar a arte.
Eu não me curvo à Coroa de Ferro,
nem meu cetrozinho dourado enterro.
*
No Paraíso pode o olho vagar
do Dia imorredouro contemplar,
a ver o que ele ilumina, e nova
Verdade ter com essa vera prova.
Olhando a Terra Bendita verá
que tudo é como é, e livre será:
A Salvação não muda, nem destrói,
jardim, criança ou brinquedo corrói.
Mal não verá, pois esse mal está
não no que Deus fez, mas no erro do olhar,
não na fonte, mas em escolha errada,
e não no som, mas na voz quebrantada.
No Paraíso não estão mais confusos;
criam novo, sem mentira nos usos.
Criarão, não estando mortos, é certo,
poetas com halo de chamas perto,
e harpas que sem falta tocarão:
do Todo cada um terá quinhão.