O jogo da conservação da fauna, no qual todos ganham
É sempre uma alegria ver o interesse crescente dos pesquisadores brasileiros em contar a história do seu trabalho para o grande público, buscando ferramentas para que a ciência se torne um diálogo, em vez de um monólogo. O blog se tornou parceiro de uma dessas iniciativas importantes, realizada neste ano na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos, aqui do meu lado), na disciplina de pós-graduação Escrita para Divulgação Científica, ministrada pela professora Patricia Domingues de Freitas.
Depois de devidamente editados pela pesquisadora da UFSCar, textos de alguns dos alunos dos programas de pós-graduação em Genética Evolutiva e Biologia Molecular (PPGGEv) ou de Conservação da Fauna (PPGCFau) serão publicados por aqui, todo dia, ao longo dos próximos dias. Começamos com um tema divertido: o uso dos RPGs (roleplaying games ou jogos de representação, mais conhecidos pela ambientação fantástica e medieval) como ferramenta para promover a conservação da fauna. O texto é de Adriana Fernandes Machado de Oliveira. Boa leitura!
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Conservação da fauna em jogo
O uso de Roleplaying Games como instrumento de ensino envolve crianças e adultos na preservação dos animais
Imagine que você está em um sítio na belíssima Serra da Canastra, em Minas Gerais, e escuta uma movimentação no quintal. Você corre para ver o que é e encontra um lobo-guará com uma galinha na boca – já é a quinta morta só neste mês. Sem pensar duas vezes, você pega a espingarda e atira. Afinal, não dá para ter mais prejuízo, não é mesmo?
Situações como esta são incomuns à maioria das pessoas, que permanecem alheias ao problema. Uma estratégia de ensino transformadora, no entanto, tem trazido com êxito essas outras realidades para dentro da sala de aula e outros espaços não-formais de educação, avançando em questões ambientais que dificilmente seriam abordadas na escola. Trata-se do Role-Playing Game (RPG), um jogo de papéis em que os participantes interpretam personagens com a intenção de simular uma possível realidade alternativa. Utilizado há algum tempo na área da educação ambiental, o jogo recentemente ganhou visibilidade na questão da conservação da fauna, sendo aplicado, nos últimos três anos, em institutos de pesquisa e cursos de formação continuada de professores na cidade de São Paulo.
Criado no início da década de 1970 nos Estados Unidos, o RPG segue parâmetros pré-definidos, como normas, cenários e roteiros, e teve a temática Medieval/Fantasia como principal fonte de inspiração durante muito tempo, transformando jovens e adultos em guerreiros, elfos, anões, feiticeiros e demais criaturas do gênero. Atualmente, a diversidade de cenários e personagens existentes no RPG demonstra o sucesso e a versatilidade deste jogo, que se apresenta para diferentes públicos de várias idades.
O jogo é mediado por um mestre, mas se constrói com a cooperação de todos os participantes. A cada jogo, o mestre guia a história e conduz as ações dos demais jogadores. Ao trazer o RPG para a sala de aula, os papeis do professor e o do mestre se misturam: encaminhar a narrativa do jogo é uma forma de facilitar a aquisição de conhecimento pelo aluno/personagem. Por meio de processos criativos e colaborativos, os jogadores interagem dentro de cada papel assumido e interpretam suas características, personalidades, diálogos e decisões. Assim, a história vai sendo construída e se diferenciando do roteiro original à medida que os personagens realizam ações. Não há vencedores ou perdedores e os participantes comumente refletem, sem perceber, sobre situações incomuns ao cotidiano.
No caso de RPGs relacionados à Educação Ambiental, alguns estudos realizados no Brasil nos últimos quinze anos abordam temas como gerenciamento de uso do solo, gestão das águas, gestão urbana, administração de recursos naturais e, mais recentemente, também a conservação da fauna dentro desta metodologia didática.
Um exemplo de uso bem-sucedido da abordagem RPG na Educação Ambiental vem sendo realizado pelo programa USP-Escola, encontro que promove a capacitação gratuita de professores da educação básica. O cenário fictício, nesse caso, é uma cidadezinha do interior mineiro localizada em pleno cerrado. Nesse ambiente, o conflito ambiental que se apresenta é a ocorrência de eventos de predação de galinhas por lobo-guará, canídeo endêmico do cerrado Brasileiro. Preocupados com as retaliações aos lobos-guará por parte dos moradores locais, pesquisadores levam o caso ao conselho do Meio Ambiente do município, em busca de uma solução.
Este jogo, realizado pelo programa anualmente desde 2016, busca inspiração no Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, em que os participantes assumem diversos papeis em camadas sociais diversas, inclusive nas menos favorecidas. Pequenos e grandes proprietários rurais, educadores, cientistas, gestores de unidades de conservação e representantes de ONGs (Organizações Não Governamentais) ambientalistas fazem parte do elenco fictício da cidade mineira. “Os jogadores realmente discutem e participam dessa dinâmica como se fossem o agricultor, o representante da indústria, o gestor (…), eles vestem a camisa”, conta a pesquisadora Mariana Tambellini, doutoranda em ensino de Ciências na Universidade de São Paulo e uma das responsáveis pelo projeto.
Entra então o papel do mestre do jogo, que conduz cada personagem a expor sua opinião a respeito do problema, como este se sente, quais suas reivindicações e quem poderia resolvê-las. “Existe um preparo, um momento inicial de trabalho em grupo para definir quais serão os argumentos que serão utilizados”, descreve Mariana. Assim, questões diversas vão sendo levantadas e refletidas sob diferentes pontos de vista, esquentando o debate sobre o dilema apresentado e levando à transformação da realidade por meio do diálogo, como proposto pelo icônico filósofo e pedagogo brasileiro Paulo Freire (1921-1997).
Em 2017, o Instituto Butantan, conceituado Centro de Pesquisas de São Paulo, famoso por seus estudos com venenos de cobras, também começou a apresentar o RPG a seus visitantes, por meio de um jogo sobre a ilha da Queimada Grande – também conhecida como ilha das cobras. Somente nesta ilha pode ser encontrada a jararaca-ilhoa, serpente de hábito arborícola que costuma se alimentar de aves migratórias. No jogo, a ilha começa a afundar misteriosamente e um grupo de cientistas precisa salvar os casais de jararacas para que a espécie não seja extinta. Os jogadores são convidados a se juntarem à equipe de estudiosos para entrar na ilha, salvar as cobras e, por fim, sair de lá com vida. Esta experiência lúdica proporciona aos visitantes a observação e reflexão de seus comportamentos em uma situação de conflito comumente distante de sua realidade.
De acordo com os educadores do Butantan, a dinâmica colaborativa do jogo atraiu principalmente o público jovem. “Além de se preocuparem em resolver o problema proposto e salvar a ilha, os participantes levantaram questionamentos sobre conservação das serpentes”, relata a educadora Adriana Aparecida Andrade Chagas. “Acreditamos que os jogos, dentro dos espaços de educação formal (escolas) e não-formal (dentre eles, os museus), têm lugar no processo de ensino-aprendizagem devido a seu potencial para despertar o interesse pelas temáticas abordadas e como disparador de questionamentos e discussões”, finaliza.
Embora estas duas narrativas de RPG abordem problemáticas distintas, ambas reúnem aspectos sociais, econômicos, políticos e ambientais de questões inerentes à mesma temática: conservação da fauna. Em ambos os casos, o participante é levado a refletir sobre situações incomuns de forma prazerosa, porém, que se apresentam como dificuldades possivelmente reais. No entanto, Mariana Tambellini ressalta que este é um trabalho em grupo que demanda um pouco mais de autonomia do aluno – o que torna o jogo uma atividade muito rica: “Não é uma atividade fácil para alunos que estejam mais acostumados apenas com o receber, sem se envolver de fato”.
Segundo o sociólogo norte-americano Jack Mezirow, essa experiência transformadora é capaz de mudar formas de pensar e agir frente a desafios reais do dia a dia, trazendo a versão emancipatória do conhecimento. Como ferramenta educativa, Mezirow reconhece que apresenta um potencial enorme, uma vez que liberta o indivíduo para que este transforme sua própria vida e o meio em que vive, baseado na consciência adquirida pelo jogador a respeito das condições ambientais de sua comunidade. É o conhecimento atuando na prática: um dilema fictício, representando uma crise, resulta em uma mudança de perspectivas; e esse processo, por sua vez, modifica as ações resultantes, uma vez que a cada jogada, um passo adiante é dado em direção à preservação ambiental.