O infravermelho que ajuda a tratar e estudar animais silvestres
É com prazer que continuamos a nossa série de posts feitos por convidados, alunos da disciplina de pós-graduação Escrita para Divulgação Científica, ministrada pela professora Patricia Domingues de Freitas na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). O primeiro texto da série pode ser conferido aqui.
Desta vez, o nosso tema é uma técnica inovadora usada para tratar e estudar animais silvestres em cativeiro. O texto é de André Luiz Mota da Costa. Boa leitura!
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O uso da termografia infravermelha na medicina veterinária e seu potencial no estudo de animais silvestres
Aparelho capaz de captar o calor corpóreo ajuda a detectar alterações de temperatura em espécies mantidas em cativeiro e na natureza, contribuindo para o diagnóstico precoce e para o estudo de aspectos relacionados à biologia do animal
O diagnóstico de doenças graves em animais de grande porte mantidos em cativeiro vem sendo feito de uma forma inovadora. Usando a termografia infravermelha, técnica que permite medir a temperatura dos animais de maneira precisa até uma distância de 20 metros, uma onça-pintada foi salva de um câncer e um elefante recebeu tratamento local específico em um zoológico de São Paulo. Além disso, o uso dessa tecnologia em animais de vida-livre também está permitido o estudo de espécies com aspectos relacionados à reprodução e biologia ainda pouco compreendidos.
A termografia médica infravermelha é um método seguro e não invasivo de diagnóstico que se baseia na detecção de raios infravermelhos emitidos pelos corpos. Ela permite o diagnóstico de processos patológicos e/ou fisiológicos, baseado em alterações no fluxo sanguíneo e consequente mudança de temperatura. Na medicina humana seu uso vai desde a detecção de lesões musculares em atletas até o diagnóstico de artroses em pacientes na terceira idade. Na medicina veterinária, a termografia começou a ser utilizada em animais de produção a partir de 1950. Mas foi somente em 1994 que dois veterinários alemães, Eulenberger e Kampfer, publicaram os primeiros estudos recomendando a termografia infravermelha em animais silvestres mantidos em zoológicos e também em vida livre. Desde então, o uso do termovisor tem permitido uma avaliação veterinária eficiente à distância, possibilitando o diagnóstico sem que seja necessário capturar o animal, causar estresse ou interferir em seu comportamento natural.
O início do uso do termovisor no diagnóstico animal possibilitou identificar lesões em vacas leiteiras e em galinhas poedeiras e também avaliar o estresse térmico nesses animais mantidos em confinamento. O sucesso dessa técnica logo se expandiu para os animais de estimação, alcançando grande sucesso na avaliação de cavalos, os quais costumam ser muito suscetíveis a lesões articulares e musculares. Com o passar dos anos, a imagem térmica na veterinária começou a ser utilizada também para avaliar o período fértil das fêmeas e confirmar a gestação, além é claro de diagnosticar doenças infecciosas e identificar lesões e inflamações de forma precisa.
No Zoológico de Sorocaba o termovisor vem sendo utilizado com sucesso para diagnóstico veterinário. Inaugurado em 1968, este Zoo é considerado um dos mais completos da América Latina, mantendo cerca de 1.250 indivíduos em suas instalações. Aproximadamente 70% dos animais alocados na instituição é da fauna brasileira. Entretanto, o Zoo também abriga espécies provenientes de diferentes países, como elefantes, hipopótamos, leões, ursos e tigres.
O Parque Zoológico Municipal Quinzinho de Barros (PZMQB), como também é conhecido o Zoo de Sorocaba, é classificado pelo IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) na categoria A, que consiste no grau mais elevado de classificação em termos de excelência de suas instalações e atividades de recreação saudável, que incluem contato com a natureza e programas de educação ambiental, e de pesquisas, através de colaborações nacionais e internacionais que promovem o desenvolvimento e implementação de planos manejo de espécies ameaçadas.
Segundo o médico veterinário André Costa, a ideia de utilizar a termografia no Zoo de Sorocaba surgiu após conversas com colegas de profissão e contato com os trabalhos de alguns estudiosos da área que utilizaram o método para diagnosticar o período fértil e o estágio gestacional em alguns animais mantidos em cativeiro. Hoje esta tecnologia é utilizada com sucesso no Zoo para detectar indícios de processos febris e inflamatórios, lesões e até mesmo doenças graves como câncer.
André, que atualmente desenvolve pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Conservação da Fauna (PPGCFau), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em parceria com a Fundação Parque Zoológico de São Paulo (FPZSP), diz que “devido à dificuldade de avaliar algumas espécies mais perigosas, como os grandes felinos, e outros animais mais sensíveis ao estresse de contenção, como algumas espécies de veados, a termografia se mostra uma excelente alternativa para auxílio no diagnóstico”.
No Brasil, a termografia infravermelha já havia sido empregada com eficiência pelo veterinário Rodrigo Teixeira, professor na Universidade de Sorocaba e na Faculdade Max Planck, ambas situadas no interior paulista. Segundo André, Rodrigo o apresentou a esta tecnologia pela primeira vez quando ambos tentavam descobrir por que um elefante mantido em cativeiro estava mancando. Neste caso, o uso do termovisor permitiu localizar de forma precisa uma lesão na pata do animal e os veterinários puderam focar a terapia no ponto específico. Este diagnóstico facilitou o tratamento de um animal de grande porte e de difícil contenção. Apesar da eficiência desta tecnologia, Rodrigo ressalta, no entanto, que após o uso do termógrafo, deve-se incluir exames complementares para concluir um diagnóstico.
Para Solange Mikail, uma das primeiras profissionais a utilizar o termovisor na medicina veterinária no Brasil, a tecnologia da termografia infravermelha tem um potencial enorme na medicina veterinária de animais domesticados e mantidos em cativeiro, mas também em animais de vida livre. Solange, que iniciou o uso do termovisor em equinos, logo expandiu sua aplicação para outras espécies, incluindo insetos. Segundo a veterinária, um pesquisador de Harvard que veio ao Brasil para estudar um fungo que acomete as formigas cortadeiras nos países tropicais a convidou para integrar-se ao seu grupo de pesquisa e utilizar a termografia em plena floresta. Solange também comenta que já detectou gestação em espécies silvestres e que conseguiu determinar com precisão o período reprodutivo nos lêmures, um tipo de primata que fica no cio apenas um dia ao ano. Para ela, embora o uso do termovisor ainda seja mais aplicado em animais domesticados, essa tecnologia tem um enorme potencial para estudos em espécies com hábitos noturnos ou com a biologia e fisiologia ainda pouco conhecida. Além disso, em cativeiro pode-se fazer uso do termovisor para avaliar a temperatura de recintos e assegurar o bem-estar dos animais, finaliza.
Após quase 70 anos do uso da termografia no diagnóstico animal, exemplos de sucesso confirmam o emprego efetivo do uso desta tecnologia na veterinária no Brasil. O diagnóstico precoce de um câncer em uma onça-pintada, por exemplo, permitiu o tratamento adequado, evitando que a doença progredisse nesse animal. Vagalume, como é conhecido esse macho de Panthera onca, havia sido resgatado em 1997, após a morte de sua mãe em uma região do Pantanal mato-grossense, sendo levado para ser cuidado no Zoo de Sorocaba, onde permanece até hoje. Recentemente, o uso do termógrafo neste animal acusou um aumento de temperatura na região da virilha. Após três dias monitorando a temperatura corpórea à distância, notou-se que o calor excessivo nesta área não cedia. Com base nesta observação, o animal foi anestesiado e exames mais específicos foram realizados. A intervenção acusou a presença de um tumor maligno, ainda em estágio inicial, que foi posteriormente removido por procedimento cirúrgico. Na fase de recuperação pós-cirúrgica, o monitoramento à distância também foi eficaz, mostrando não haver mais alterações de temperatura na região em que o tumor se localizava. São exemplos como estes que são objeto de pesquisas relativas ao uso e eficácia da termografia infra-vermelha na medicina veterinária.
Termografia: a lógica básica por trás do sistema
A termografia permite mapear as temperaturas nas partes do corpo de diferentes espécies e realizar um monitoramento ao longo do tempo. Alterações no padrão de temperatura sugerem alterações do fluxo sanguíneo, sempre associado a um processo fisiológico ou patológico; a interpretação desses dados pode levar ao diagnóstico, muitas vezes anterior ao aparecimento de sintomas. Vale lembrar que o raio infravermelho é uma frequência eletromagnética naturalmente emitida por qualquer corpo, porém essa frequência está além da capacidade humana de visão. Dessa forma, o termovisor não só identifica como também mensura a frequência dos raios; tornando extremamente fácil a localização de regiões quentes ou frias, através da interpretação dos termogramas que fornecem imagens, em faixas de temperaturas representadas por gradiente de cores (que podem cobrir de – 40°C a 1500ºC).
Desde os tempos de Hipócrates
A primeira aplicação médica do conceito da “termografia” foi utilizada por Hipócrates, o pai da Medicina, que viveu entre 460 e 375 aC. Ao aplicar lama na pele de seus pacientes, com função terapêutica, Hipócrates notava que nas áreas em que a lama secava mais rápido, a temperatura corpórea aumentava, sendo possível assim detectar o local da afecção. Entretanto, foi apenas em 1800 que o astrônomo alemão William Herschel (descobridor do planeta Urano) conseguiu provar a existência dos raios infra-vermelhos, sendo criado o primeiro termógrafo em 1830 por John Herschel, seu filho. Na medicina humana a termografia começou a ser empregada em 1960 e foi usada para detecção precoce de doenças apenas nos anos 80.