Veredas, as reservas de água no coração do cerrado
É com prazer que continuamos nossa série de textos produzidos oelos alunos da disciplina de pós-graduação Escrita para Divulgação Científica, ministrada pela professora Patricia Domingues de Freitas na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). Estes são os dois textos anteriores da série:
O infravermelho que ajuda a tratar e estudar animais silvestres
O jogo da conservação da fauna, no qual todos ganham
Nesta nova postagem, vamos conhecer as veredas, que inspiraram o maior dos escritores de Minas Gerais, por um ângulo científico. O texto é de Lívia Caroline César Dias e Luiz Eduardo Moschini. Boa leitura!
Veredas: as reservas de água no coração do Cerrado
Pesquisas revelam a importância na manutenção do equilíbrio ambiental destes verdadeiros oásis escondidos no norte de Minas Gerais
Nas paisagens do Norte de Minas Gerais, o verde do Cerrado vai até onde os olhos conseguem alcançar, se misturando ao azul do céu. No interior deste cenário encontramos uma vegetação resistente, com buritizais enormes acompanhados por pântanos e nascentes de rios. As veredas – um verdadeiro oásis no meio do Cerrado – são encontradas ao longo da região central do Brasil e exercem papel fundamental na persistência do Cerrado, uma vez que aumentam sua resiliência, ou seja, sua capacidade de lidar e se recuperar de impactos negativos.
Muito antes de Guimarães Rosa versar sobre as belezas das veredas em seu livro “Grande Sertão: Veredas”, publicado em 1956, a importância desses ambientes especiais já era muito bem conhecida pelos que vivem em regiões de Cerrado. As veredas são fontes perenes de água no período de estiagem, exercendo assim o importante papel de fixar os seres humanos nessas regiões, além de estabelecer ligações fundamentais para a manutenção da flora e da fauna no bioma. Devido às suas características fisionômicas resultantes da maior disponibilidade de água no solo, as veredas também representam uma quebra na monotonia da vegetação do Cerrado.
No Brasil, este ambiente é protegido por leis ambientais específicas. Contudo, as veredas estão sofrendo um processo de mudança rápida e contínua para áreas de agricultura e silvicultura, além de extensas áreas de pastagens. Um importante ponto a destacar é que a vereda possui um papel desproporcional à área que ocupa: devastar uma vereda de alguns km² pode impactar o equilíbrio de centenas de km² de Cerrado!
Considerando sua grande importância dentro do contexto sócio-ecológico-ambiental, alguns pesquisadores têm somado esforços e avançado no estudo das veredas. No entanto, Walter Viana, Philippe Maillard e Thiago de Alencar, pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), avaliam que, à exceção de algumas pesquisas isoladas sobre os aspectos físicos das veredas, poucos estudos tratam diretamente sobre o tema, e pouco se tem feito para inventariar o ambiente no intuito de conhecer o seu atual estágio de degradação. Thiago de Alencar, que desenvolve pesquisa sobre métodos que possibilitem a delimitação e caracterização das veredas a partir de imagens de satélites, exemplifica contando que, apesar de existir uma rica literatura de sensoriamento remoto aplicado às terras úmidas, relativamente poucos estudos concentraram-se no estudo das veredas.
Apesar da escassez de pesquisas abordando diretamente as veredas, estas são pano de fundo de muitos outros estudos, que têm as veredas como habitat principal das espécies estudadas. Este é o caso de um estudo realizado pela bióloga Izabela Barata, do Instituto Biotrópicos e doutoranda do Instituto de Conservação e Ecologia de Durrell (Universidade de Kent, Inglaterra). Izabela, que trabalhou com comunidades de anfíbios no Parque Estadual Grande Sertão Veredas – que fica na divisa de Minas Gerais com a Bahia –, viu que, no período das chuvas, quando as veredas transbordam e formam lagoas marginais, diversas espécies de anfíbios utilizam preferencialmente esses locais. Nesse ambiente, a pesquisadora pôde descrever as espécies típicas de Cerrado, determinar sua riqueza e abundância e, também, como as variáveis climáticas interferem no equilíbrio dessas comunidades.
A pesquisadora enfatiza várias características das veredas que as tornam tão importantes, considerando não só o seu estudo, mas todo o ecossistema. “As veredas são ecossistemas únicos no que diz respeito à disponibilidade de água no sertão. Considerando a baixa pluviosidade registrada para a região, as veredas são ambientes importantes de água e umidade para a reprodução dos anfíbios, que apresentam marcada sazonalidade. Com as chuvas, as veredas conseguem reter água suficiente para que as espécies completem seu ciclo de vida, oferecendo umidade para as desovas e água para os girinos”, descreve. “A estrutura da vegetação é também mais complexa do que parece e, na vereda, temos diferentes extratos na vegetação, que favorecem a ocorrência de um grande número de espécies. No norte de Minas, as veredas são certamente importantes locais para manutenção da diversidade de anuros (sapos, pererecas e rãs)”, conclui.
Já o biólogo Guilherme Ferreira, também pesquisador do Instituto Biotrópicos e doutorando do Centro de Pesquisa em Biodiversidade e Meio Ambiente (University College London, Inglaterra), conta como o estudo com comunidades de mamíferos de médio e grande portes, a partir da utilização de armadilhas fotográficas, tem possibilitado estimar a riqueza e a abundância de espécies que utilizam as veredas como refúgio nos parques estaduais Veredas do Peruaçu e Grande Sertão Veredas e em outras unidades de conservação do mosaico de áreas protegidas Sertão Veredas, em Peruaçu, norte do Estado de Minas Gerais. “Com relação aos mamíferos, as veredas são importantes por conta dos recursos que elas fornecem. Em uma região que passa cinco meses praticamente sem chuva, as veredas são cruciais no fornecimento de água. Além disso, diversos animais, incluindo algumas espécies de mamíferos, se alimentam dos frutos da palmeira buriti, que está sempre presente nas veredas. E, também, por ser um ambiente com maior umidade, o capim próximo às veredas é um recurso importante para os herbívoros, principalmente na estação seca”, avalia.
São pesquisas como estas que têm ressaltado a imensa importância das veredas na manutenção do equilíbrio ambiental no Cerrado e a necessidade de estudos que não apenas considerem as suas características físicas, mas toda a sua rede de interação, alertando para a necessidade de planos de ações que visem sua conservação.
Veredas: saiba mais sobre o que são e qual sua importância
A descrição do escritor e poeta João Guimarães Rosa no livro ‘Grande Sertão Veredas’ ilustra a complexidade de chegar a uma definição sobre esse ambiente. “Há veredas grandes e pequenas, compridas e largas. Veredas com uma lagoa; com um brejo ou pântano; com pântanos de onde se formam e vão escoando e crescendo as nascentes dos rios; com brejo grande, sujo, emaranhado de matagal (marimbú); com córrego, ribeirão ou riacho”. Já George Eiten, um dos primeiros pesquisadores a estudar e descrever as veredas, na década de 1970, registra em um trabalho presente nos Arquivos do Jardim Botânico do Rio de Janeiro que, “a partir do contato com o cerrado em direção ao fundo do seu vale, pouco profundo, encontra-se um campo herbáceo, seguido por uma região de arbustos e, no meio, uma área de extratos arbóreos onde se destaca a palmeira Buriti”.
Em outras palavras, as veredas são como miragens que ofuscam toda a beleza dura do sertão. Costumamos dizer que a beleza é tanta, que machuca e afaga ao mesmo tempo. Por causa da maior umidade, o verde da vereda é mais verde, a vegetação é mais alta que a do Cerrado e o ar é mais fresco.
São estas condições que favorecem o desenvolvimento e a manutenção da flora e da fauna do Cerrado neste ambiente. Assim, as veredas exercem papel de corredores ecológicos naturais, permitindo o deslocamento das espécies animais no Cerrado. Para as populações humanas, elas têm grande importância para fixação das pessoas na região, onde o principal fator restritivo é a disponibilidade de água, já que são uma fonte perene de água para utilização doméstica ou nas práticas agrícolas. Além disso, destaca-se seu valor econômico, devido ao grande potencial do buriti (Figura 3) no fornecimento de diversos produtos como as raspas do fruto do buriti utilizado para fazer doces e o óleo do buriti utilizado em cosméticos.
Tendo em vista essa importância socioambiental da região das veredas, a legislação brasileira fomenta sua preservação, através da sua inclusão no escopo de leis ambientais específicas. Apesar disso, as veredas apresentam um quadro significativo de degradação, resultado de práticas inadequadas de manejo e da utilização inapropriada deste recurso.
Veredas e serviços ecossistêmicos
Funções ecossistêmicas podem, simplificadamente, ser definidas como interações constantes que ocorrem entre os elementos de um ecossistema, como, por exemplo, a ciclagem de nutrientes, transferência de energia, circulação da água, regulação climática e regulação de gases. É por meio delas que são gerados os serviços ecossistêmicos, que são benefícios diretos e indiretos obtidos pelos seres humanos a partir dos ecossistemas. Nesse contexto, é incontestável a relevância do Cerrado na regulação da disponibilidade hídrica superficial e subterrânea, o que já seria suficiente para justificar sua conservação como importante valor ambiental. No entanto, considerando também questões econômicas, destaca-se o fato de que o Cerrado participar da regularização da vazão dos rios implica diretamente na garantia de abastecimento de energia hidrelétrica.
Segundo o Ministério do Meio Ambiente, as veredas são áreas úmidas de extrema importância perante eventos climáticos extremos. Seus solos, geralmente turfosos, com alto teor de material vegetal em decomposição, contribuem com o estoque de carbono do domínio Cerrado. Isso é um indício do enorme potencial deste solo para realizar uma das funções ecossistêmicas mais importantes: a função de regulação das condições ambientais naturais.
Fica mais fácil compreender a importância desta função quando entendemos o ciclo carbono no meio ambiente. De modo simplificado, o ciclo do carbono tem início quando as plantas e outros organismos autótrofos (seres vivos que produzem seu próprio alimento, como os vegetais) absorvem o gás carbônico da atmosfera para utiliza-lo na fotossíntese e esse carbono é devolvido ao meio na mesma velocidade em que é sintetizado pelos produtores, pois a devolução de carbono ocorre continuamente por meio da respiração durante a vida dos seres. Quando causamos um desequilíbrio a este ciclo, com queimadas por exemplo, a quantidade de carbono liberado para a atmosfera é maior do que a quantidade que as plantas conseguem sintetizar. Este carbono excedente causa danos na atmosfera, fato que contribui para as mudanças climáticas que estamos vivenciando.
Essa relação prova que as veredas presentes nos cerrados do centro do Brasil podem melhorar o clima não só na região em que existem, mas em áreas a quilômetros de distância de onde ocorrem, pois contribuem com a função de regulação.
A doutoranda Lívia Dias e o Prof. Dr. Luiz Eduardo Moschini, do Departamento de Ciências Ambientais da Universidade Federal de São Carlos, procuram compreender as influências das veredas na paisagem do Cerrado, considerando suas características peculiares e principalmente a quantidade de carbono estocado nos solos úmidos e ricos em matéria orgânica, para avaliar as suas funções ecossistêmicas deste ambiente. Infelizmente, coletar solo em áreas alagadas é um desafio, demandando esforço adicional para efetivar esta pesquisa, já que sem as amostras de solo coletadas adequadamente, este estudo não pode ser realizado.
Por ser um tema muito complexo, ainda não se tornaram públicos trabalhos que busquem quantificar as funções ecossistêmicas das veredas e os serviços ecossistêmicos por elas gerados. Espera-se, no entanto, que o avanço das pesquisas sobre este ambiente permita, num futuro próximo, comprovar o importante papel que as veredas exercem no ecossistema, incluindo o homem como elemento intrínseco à natureza.