Os bugios que habitam um refúgio na selva de pedra paulistana

É com prazer que continuamos nossa série de textos produzidos pelos alunos da disciplina de pós-graduação Escrita para Divulgação Científica, ministrada pela professora Patricia Domingues de Freitas na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). Estes são os três textos anteriores da série:

O jogo da conservação da fauna, no qual todos ganham

O infravermelho que ajuda a tratar e estudar animais silvestres

Veredas, as reservas de água no coração do cerrado

Na postagem de hoje, muitas informações interessantes sobre os bugios que vivem num parque estadual bem no meio da capital paulista. O texto é de Cauê Monticelli. Boa leitura!

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Macacos-bugios habitam um refúgio de floresta situado em plena selva paulistana
Uma população de bugios-ruivos luta pela sobrevivência em uma floresta urbana frente aos constantes impactos causados pela crescente expansão da cidade de São Paulo

Um remanescente de floresta Atlântica que propicia refúgio para uma fauna pouco conhecida sobrevive na maior metrópole do país. Essa ilha verde, localizada em plena selva paulistana, abriga instituições como o Instituto de Botânica e o Zoológico de São Paulo, e sofre constantemente pelo contato direto com a cidade cinzenta que a circunda e a isola. Apesar dessa condição não tão favorável à manutenção da biodiversidade, essa área de 647 ha abriga uma série de espécies vegetais e animais, incluindo os bugios-ruivos Alouatta guariba clamitans, primatas famosos pelo grito característico. Preocupados com os impactos negativos que estes animais vinham sofrendo nesta área, pesquisadores iniciaram estudos para tentar minimizar a alta taxa de mortalidade de bugios observada neste local.

O Parque Estadual das Fontes do Ipiranga (PEFI) é uma Unidade de Conservação que representa o maior fragmento de Mata Atlântica inserido na área urbana da região metropolitana de São Paulo. Ele abriga mais de 200 espécies de aves, mamíferos e répteis, que passam despercebidos pela maior parte da população paulistana. Em 1893, a região, outrora privada, foi desapropriada pelo governo do Estado para ser utilizada como fonte de recurso hídrico para o município de São Paulo a partir da preservação das nascentes. Já em 1969, após reformulação do sistema de abastecimento de São Paulo, a área foi oficialmente registrada como Unidade de Conservação com intuito de manter e preservar a fauna e flora local.

Uma espécie símbolo do PEFI é o macaco-bugio, também conhecido como barbado ou roncador. Este primata tem enfrentado desafios diários para desempenhar seus comportamentos naturais em meio à movimentada e populosa cidade de São Paulo. Durante a busca por recursos básicos para sobrevivência, os bugios rotineiramente são acometidos por descargas elétricas, atropelamentos, e quedas em substratos pavimentados, devido ao espaçamento arbóreo e outros acidentes que em geral levam à morte.

A Fundação Parque Zoológico de São Paulo (FPZSP), por ser uma das instituições inseridas no PEFI, e por possuir um corpo técnico capacitado ao manejo de animais silvestres, tem oferecido suporte na gestão da fauna silvestre dessa Unidade de Conservação. Muitos projetos de pesquisa vêm sendo desenvolvidos pela FPZSP em parceria com a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a Eletropaulo e o Instituto Adolfo Lutz. Estes estudos têm possibilitado diagnosticar as principais causas de impacto e os locais mais críticos de ameaça para diversas espécies que ocorrem na área, incluindo o bugio-ruivo.

Preocupados com a situação dos bugios no PEFI, pesquisadores têm realizado estudos e implementado algumas medidas mitigatórias na área para tentar minimizar os impactos negativos que afetam a sobrevivência dos bugios adultos e filhotes, de ambos os sexos.

A instalação de “transfaunas” – pontes suspensas que possibilitam o deslocamento aéreo de animais arborícolas – tem sido uma das principais medidas aplicadas no PEFI. Essas pontes proporcionam conectividade entre as árvores, possibilitando o deslocamento seguro dos animais. As transfaunas geralmente são instaladas por cima de ruas, avenidas e rodovias, evitando o deslocamento dos animais pelo solo e o consequente risco de atropelamento. A conectividade artificial também minimiza as quedas em substrato pavimentado. Muitos bugios, principalmente os filhotes e juvenis, apresentam concussões e fraturas, geralmente na maxila, pernas e braços, em decorrência das quedas. Estas injúrias muitas vezes inviabilizam a sobrevivência do animal na natureza.

O PEFI é um exemplo de área verde que sofre as consequências da expansão urbana desenfreada. Muitas espécies de mamíferos, aves, répteis e anfíbios encontram-se hoje isoladas nessas ilhas verdes, sem chance segura para realizar dispersão. Esse fato dificulta a sobrevivência de espécies mais sensíveis que necessitam de ambientes maiores e mais conectados, limitando a busca por recursos alimentares e novos parceiros reprodutivos.

Devido à falta de conectividade entre as árvores, por vezes os animais utilizam os fios eletrificados como estrutura para deslocamento, o que aumenta a chance de acidentes. Como uma medida conservacionista, pesquisadores utilizaram dados gerados em estudos que monitoram os impactos dos bugios no PEFI para solicitar a substituição de toda a fiação das principais avenidas que circundam o Parque, visando evitar os acidentes. Após esta medida, o número de descargas elétricas acidentais sofridas pelos animais diminuiu consideravelmente. Os atuais fios existentes no entorno do Parque permitem que os animais se desloquem, e até eventualmente se encostem no fio, sem sofrer danos.

Todos os estudos e medidas mitigatórias desenvolvidos no PEFI possuem o objetivo de conhecer, entender e conservar os primatas no local. Contudo, a redução drástica das taxas de mortalidade pode promover o surgimento de uma superpopulação, insustentável para a área, já que não existe a possibilidade de os animais dispersarem para outras matas. Assim, um monitoramento constante que avalie os riscos e impactos do aumento populacional também deve ser considerado para o manejo adequado da população de bugios nesta área.

A divulgação de óbito de alguns bugios no PEFI tem contribuído de forma positiva para sua conservação, devido à sensibilização da sociedade para a problemática de ameaça a esta espécie carismática. Os resgates de animais em situação de risco realizados por biólogos e veterinários também vem permitindo a coleta de material biológico que serve de base para estudos incluindo clínicos, incluindo avaliações de hemograma, análises bioquímicas e estudos para detecção de doenças causadas por um tipo de vírus conhecido como arbovirus, principalmente pelo atual risco de saúde ambiental gerado pela disseminação da febre amarela no estado de São Paulo.

Parte do material biológico obtido nessas coletas tem sido utilizada para análises genético-moleculares e inferências sobre a estrutura genética da população de bugios do Parque. Após a captura do animal e coleta das amostras biológicas, todos os locais de coleta são registrados com GPS (Sistema de Posicionamento Global) para posterior avaliação da dinâmica e distribuição da população na área de estudo, além de seu estado de saúde. Todos estes dados podem auxiliar na tomada de decisões de manejo visando a conservação da espécie.

As análises moleculares são realizadas em laboratório a partir da extração de DNA de pequenas amostras de sangue, pelo ou fezes dos animais. As coletas amostrais em geral ocorrem em campo durante buscas ativas e acompanhamento dos animais na natureza ou durante as capturas. Uma vez obtido o DNA, esse é utilizado em experimentos laboratoriais para amplificação de trechos da sequência de DNA. Com base na análise dessas regiões genômicas, os pesquisadores podem acessar informações sobre relações de parentesco entre os animais, inferir sobre os níveis de diversidade genética dentro da população e sobre o grau de diferenciação genética desta população em relação a outras populações de bugios.

Para a pesquisadora Patrícia Domingues de Freitas, do Laboratório de Biodiversidade Molecular e Conservação da UFSCar, localizada no interior paulista, a caracterização da estrutura populacional dos bugios do PEFI pode contribuir para avaliar o status genético desses animais na área, e para inferir sobre aspectos comportamentais relacionados à reprodução. Patrícia, que atua nos Programas de Pós-Graduação em Conservação da Fauna (PPGCFau) e em Genética Evolutiva e Biologia Molecular (PPGGEv), diz que populações com maior diversidade genética tendem a apresentar um potencial de adaptação aumentado frente a eventuais distúrbios ou modificações ambientais. Para ela, as análises com marcadores moleculares, nesta e em outras populações de vida livre ou cativeiro, poderão auxiliar a contar a história de vida dos bugios-ruivos. “Todos estes estudos podem promover o estabelecimento de programas de manejo eficientes que visem a conservação integrada da espécie”, conclui a pesquisadora.

Apesar dos desafios que as ilhas verdes representam para sobrevivência de uma espécie, elas podem contribuir para a manutenção da biodiversidade. Por salvaguardarem espécies raras e/ou que sofreram algum tipo de impacto, estas áreas devem ser manejadas em prol da conservação biológica, pois além de serem detentoras de diversas espécies, possuem importante papel para pesquisa e manutenção do clima por agirem como um “ar-condicionado” natural, diminuindo a temperatura do entorno em relação a outras regiões da cidade. Há ainda o apelo de cultura e lazer praticado pelo turismo urbano sustentável. Assim, as legislações e ações devem priorizar a conservação destes locais e assegurar a manutenção das espécies e dos processos ecológicos naturais.