Os desafios para estudar e preservar os anfíbios da floresta

Reinaldo José Lopes

Estamos de volta com nossa série de textos produzidos pelos alunos da disciplina de pós-graduação Escrita para Divulgação Científica, ministrada pela professora Patricia Domingues de Freitas na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos). Estes são os quatro textos anteriores:

O jogo da conservação da fauna, no qual todos ganham

O infravermelho que ajuda a tratar e estudar animais silvestres

Veredas, as reservas de água no coração do cerrado

Os bugios que habitam um refúgio na selva de pedra paulistana

Hoje, Marcelo Stéfano Bellini Lucas relata os desafios para estudar e preservar os anfíbios da floresta. Boa leitura!

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Anfíbios na floresta: desafios para estudá-los e conservá-los

É comum encontrar em meio à floresta, sob troncos e rochas, em bromélias ou em riachos, diversas espécies de anfíbios, algumas delas raras e comumente invisíveis aos olhos de quem distraidamente passa por ali, mas perceptíveis aos herpetólogos, pesquisadores dedicados ao estudo desses animais.

Os anfíbios são o grupo de vertebrados mais diversificado e, ao mesmo tempo, mais ameaçado do planeta. Nos últimos anos, pesquisas envolvendo o declínio de suas populações foram notícia em diversas partes do mundo. Dentre as principais causas de ameaça estão as mudanças climáticas globais e a proliferação de doenças. Mas é sem dúvida a degradação das florestas o fator que mais tem impactado negativamente suas populações.

O levantamento das espécies de anfíbios e o estudo de sua história de vida são fundamentais para o sucesso de sua conservação, inclusive de espécies ainda pouco conhecidas, já que a diversidade de anfíbios é tão significativa que algumas espécies podem desaparecer da Terra sem terem sido se quer registradas. O Brasil tem especial importância nesse cenário, já que, em 2016, a Sociedade Brasileira de Herpetologia, entidade que se dedica ao estudo de répteis e anfíbios, publicou dados que revelam que a biodiversidade brasileira de anfíbios está entre as maiores do mundo. Hoje, são reconhecidas no Brasil mais de mil espécies para as três principais ordens de anfíbios (Anura, Caudata e Gymnophiona), sendo que cerca de 95% delas pertence à ordem Anura, que inclui sapos, rãs e pererecas.

Devido à dependência da água para trocas gasosas, hidratação e reprodução, os anuros são sensíveis à alteração de temperatura e à incidência de ventos nas matas, causadas pela degradação da vegetação nativa e por poluentes no ar e na água. Assim, qualquer pequena alteração na qualidade do habitat influencia a sobrevivência desses animais. Por esse motivo, os anuros são considerados importantes bioindicadores ambientais, sinalizando se o ambiente onde ocorrem está equilibrado ou não.

Pesquisas realizadas nos remanescentes de Mata Atlântica têm possibilitado observar e conhecer um pouco mais sobre a biologia e a história de vida desses animais. Na Serra do Brigadeiro, em Minas Gerais, por exemplo, estudos coordenados pelo pesquisador João Victor Andrade de Lacerda, do Departamento de Zoologia da Universidade Federal de Viçosa, caracterizaram muito bem a anurofauna da região, destacando sua importância como bioma que abriga uma das maiores diversidades de anfíbios do planeta.

Inventariar a biodiversidade desse grupo, no entanto, não é uma tarefa fácil, principalmente, quando as espécies a serem catalogadas ocupam ambientes diversificados e de difícil acesso. O solo desnivelado e a vegetação emaranhada da floresta, além da presença de rochas e troncos espalhados pelo caminho, exige preparo físico do pesquisador. Além disso, os venenos secretados por algumas espécies e sua fantástica capacidade de se camuflar, tornam as expedições científicas verdadeiras aventuras ao estilo Indiana Jones. Essa tarefa de campo, em princípio extremamente excitante, para ser bem-sucedida exige também experiência e conhecimento sobre a biologia das espécies.

Os anuros adoram se esconder sob as folhas que cobrem o chão da mata, embaixo dos troncos de árvores caídas e entre as folhas das bromélias. Existem espécies que são preferencialmente terrícolas e vivem sobre o chão da mata; há aquelas chamadas criptozoicas, que vivem escondidas sob o solo em buracos que cavam ou que foram escavados por outros animais; e há também as espécies arborícolas, que usam os buracos ou reentrâncias nos troncos das árvores, repletos de bromélias e orquídeas, como abrigo e proteção durante o dia. Alguns anuros mais especialistas podem inclusive restringir sua vida ao ambiente de uma bromélia e, por este motivo, são chamados de bromelícolas. Há ainda, é claro, as espécies que vivem e se reproduzem em riachos de água corrente. Estas são as mais comumente conhecidas pelas pessoas.

A alta diversidade de microhabitats na floresta favoreceu a seleção de características diversificadas nos anfíbios. Assim, encontramos espécies com cores, formas e hábitos distintos, associados à diversidade de ambientes que ocupam e bem adaptados às variadas condições. Existem também espécies muito semelhantes, fato que exige expertise de quem as estuda para não cometer erros de identificação.

Uma alternativa para estudar e classificar corretamente as espécies de anuros consiste em reconhecer sua vocalização, ou seja, o som emitido em forma de canto. Escolher adequadamente os locais de coleta e combinar métodos de captura efetivos, que possibilitem registrar e conhecer um pouco mais sobre as espécies, também são estratégias essenciais para o sucesso dos inventários biológicos e conhecimento da biodiversidade. Mas qual a importância de conhecer e estudar este grupo animal?

Sob o ponto de vista antropogênico, os anfíbios apresentam características biológicas com enorme potencial de aplicação terapêutico e farmacológico. Compostos, secretados por glândulas localizadas na pele do animal, que são utilizados para defesa contra predadores e microrganismos presentes no ambiente onde vivem, podem ser usados, por exemplo, por sua eficaz ação antimicrobiana.

Esta atividade tem sido investigada por alguns grupos de pesquisa, dentre eles o grupo liderado por Gustavo André Tempone, do Laboratório de Parasitologia do Instituto Adolpho Lutz, em São Paulo. Tempone verificou que o veneno da rã Rana temporaria possui propriedades antiparasitárias, contra o protozoário Leishmania sp., leveduras, bactérias e outros protozoários patogênicos. Segundo o pesquisador, modificações químicas nas estruturas de alguns componentes do veneno dos anfíbios podem potencializar princípios farmacológicas ou reduzir seus efeitos tóxicos, e assim, servir como base para novos estudos experimentais e ensaios clínicos.

Sob o ponto de vista ecossistêmico, os anuros apresentam um papel importante no controle de insetos e outros invertebrados, já que predam e, consequentemente, controlam o crescimento populacional desses organismos, alguns deles considerados pragas para a agricultura e vetores de doenças. Além disso, muitas espécies de anuros são presas de diversos grupos animais, como invertebrados, peixes, répteis, aves, mamíferos e até outros anfíbios, exercendo um importante papel trófico na cadeia alimentar e equilíbrio do ecossistema.

Na Ecologia, ramo da Biologia que estuda as relações entre os seres vivos e o meio ambiente, costuma-se considerar que cada comunidade biológica possui uma composição de indivíduos e uma história ao longo do tempo única, ou seja, diferente das demais comunidades. Assim, cada microhabitat de uma floresta apresenta uma riqueza restrita àquela microrregião, a despeito de espécies iguais poderem ocorrer em diferentes locais.

A adaptação a ambientes variados e específicos da floresta e a existência de barreiras geográficas que dificultam a migração e favorecem o isolamento reprodutivo, propiciam a diferenciação de populações e o surgimento de novas espécies e aumento da biodiversidade. Com o avanço da Genética e o desenvolvimento de técnicas que permitem a análise de sequências da molécula de DNA, o estudo e identificação de novas espécies tem avançado significativamente.

Nem sempre espécies diferentes apresentam grandes variação na morfologia. Alguns anfíbios descritos há décadas como sendo da mesma espécie, devido semelhanças de coloração e forma, estão agora sendo identificados como espécies distintas, de acordo com as diferenças entre seus genomas. Nesta nova perspectiva de análise e identificação de espécies, os pesquisadores têm enfrentado o grande desafio de aliar todas as tecnologias disponíveis para fazer uma identificação mais precisa das espécies. Assim, além das observações em campo e da caracterização morfológica dos espécimes e do canto, amostras de tecidos vêm sendo coletadas para implementação de análises genético-moleculares.

Além disso, o uso da tecnologia computacional, aliado aos dados ecológicos e genéticos, está permitindo o desenvolvimento de métodos preditivos que simulam diferentes cenários climáticos potencialmente favoráveis à criação de novas áreas de proteção que beneficiem a conservação de diversos anfíbios. Pesquisas com modelagem de nichos ecológicos sugerem que espécies hoje amplamente distribuídas, ou de ocorrência a determinados habitats podem vir a ser extintas localmente ou restritas a ambientes conservados de Mata Atlântica, devido ao potencial aumento de temperatura previsto para os próximos 30 anos.

A pesquisadora Maria Tereza C. Thomé, pós-doutoranda no Departamento de Genética e Evolução da Universidade Federal de São Carlos, registra que uma grande contribuição da herpetologia brasileira tem sido dada através dos estudos evolutivos. Segundo a pesquisadora, anfíbios e répteis são excelentes modelos para estudar processos que geram biodiversidade. “Nossa ciência não é local e estamos na vanguarda. Os herpetólogos brasileiros estão liderando esse tipo de estudo no mundo. É muito bom ver pesquisadores do Brasil publicando nas melhores revistas do globo”, acrescenta.

Tereza alerta, no entanto, que apesar de toda tecnologia e dos esforços em campo para estudar os anfíbios, um grande problema que ameaça sua biodiversidade é o comércio ilegal desses animais. “Muitas espécies são coloridas e atraentes, e por esse motivo são vendidas como animais de estimação. Isso causa uma depauperação na fauna local, e estimula o tráfico e a introdução de espécies exóticas, que podem trazer doenças e desequilíbrio ambiental”, acrescenta a pesquisadora.

Um exemplo clássico de introdução de um anfíbio exótico no Brasil é o da rã Lithobates catesbeianus, que foi trazida da América do Norte para produção de carne para consumo humano. Hoje essa espécie está afetando populações de rãs de ocorrência nativa no Sul do país. Temas como este têm sido alvo de estudo por diversos pesquisadores que buscam alternativas para reduzir ou mesmo atenuar os desaparecimentos em massa que ocorreram no passado e que ainda continuam ocorrendo com inúmeras espécies de anfíbios.

Para o pesquisador Giuseppe Puorto, Diretor do Museu Biológico e Curador da Coleção Herpetológica do Instituto Butantan, de São Paulo, a herpetologia brasileira avançou muito nos últimos 30 anos. Até a década de 1980, segundo Giuseppe, o Brasil tinha um conhecimento razoável das suas espécies. Mais recentemente, no entanto, as novas gerações de pesquisadores têm ampliado o conhecimento sobre a Sistemática, ciência que estuda a relação entre as espécies e, principalmente, sobre a história de vida de suas populações. “Novas ferramentas de análise molecular nos ajudam a entender as relações entre as espécies. Não deixamos nada a desejar para os outros países. No entanto, ainda há muito a ser feito”.

Puorto destaca que é preciso conhecer bem a diversidade brasileira de anfíbios, sua distribuição geográfica, sua história evolutiva e eventos de dispersão. “Precisamos estudar também as espécies que estão ameaçadas e apresentar propostas mitigadoras, aprofundando o conhecimento sobre a história natural destes animais antes que eles desapareçam”, finaliza.

Anfíbios em ordem

Os anfíbios são divididos em três ordens: Anura, Caudata e Gymnophiona. A ordem Anura é mais rica em espécies, incluindo 1.039 tipos diferentes de sapos, rãs e pererecas. A ordem Gymnophiona inclui as cecílas ou cobras-cegas, anfíbios que possuem corpo alongado e ausência de patas e olhos, daí a origem de seu nome popular. As cobras-cegas apresentam hábitos subterrâneos ou aquáticos e incluem 36 espécies conhecidas até o momento. A ordem Caudata engloba as salamandras e tritões, que são anfíbios que possuem cauda e dois pares de patas, quando adultos. Em alguns casos as patas estão reduzidas, de acordo com seu hábito, que pode ser terrícola, arborícola ou aquático. Atualmente existem apenas cinco espécies nominalmente reconhecidas como pertencentes a esta ordem.