As raízes mitológicas e literárias de ‘O Silmarillion’, de Tolkien
Continuemos com os temas mitológicos aqui compartilhando um texto que escrevi originalmente para o fanzine Diário de Bordo, da comunidade de fãs de Star Trek, a pedido do mano e colega Salvador Nogueira, o Mensageiro Sideral desta Folha. Meu desafio: explicar “O Silmarillion”, texto mais fascinante e difícil de J.R.R. Tolkien, o autor de “O Senhor dos Anéis”. É nele que Tolkien depositou suas reflexões mais profundas sobre mitologia, teologia e literatura. Confiram o texto abaixo.
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É impressionante a quantidade de leitores iniciantes (ou mesmo não tão iniciantes assim) da obra de J.R.R. Tolkien (1892-1973) que, depois de amar O Hobbit e/ou O Senhor dos Anéis, os livros escritos em vida pelo britânico que são quase unanimidade entre os amantes da fantasia, acabam levando uma sova das poucas centenas de páginas da principal obra póstuma dele, O Silmarillion. “Cadê o fio da meada da história?”, questiona um, prestes a arrancar os cabelos. “Mano, é muito nome! Só de gente com o sufixo –fin no epíteto são uns 30”, queixa-se outro.
Sim, sou o primeiro a admitir que o livro é “difícil”. Aliás, foi escrito para ser difícil, em certo sentido. Por outro lado, confesso que sou parte mais do que interessada no destino desse texto esquisito e fascinante. Fui encarregado recentemente de produzir uma nova tradução do livro para o português do Brasil e fiz meu mestrado e doutorado sobre a obra de Tolkien, com ênfase justamente na massa interminável de rascunhos que acabariam dando origem à versão “canônica” de O Silmarillion.
Por isso, na melhor tradição do proselitismo (quase) religioso, ouso dizer: regozijai-vos, irmãos! O livro vale a pena. É, na verdade, uma pedra preciosa que precisa ser lapidada pela paciência do leitor para que brilhe em toda a sua glória, como faziam os elfos ou os anões de outrora com suas gemas mágicas. Encare este artigo como um guia para os perplexos: espero que você passe a enxergar o livro com outros olhos depois de lê-lo.
O Silmarillion, para quem não conhece, é uma espécie de Antigo Testamento do mundo criado por J.R.R. Tolkien (embora a analogia não seja tão boa assim; eu já explico). Do ponto de vista literário e narrativo, trata-se de um livro com uma das abordagens mais take no prisoners do século 20, talvez apenas comparável – por motivos totalmente diferentes, claro – a clássicos modernistas que praticamente ninguém leu, como Finnegans Wake, de James Joyce.
Nessa obra na qual trabalhou durante quase 60 anos de sua vida, e que não chegou a terminar para valer, Tolkien basicamente dá uma banana para as convenções novelísticas tradicionais, aquelas que dizem que é importante você desenvolver de forma equilibrada a psicologia de cada personagem, que é preciso construir conflitos e solucionar os ditos cujos de forma relativamente linear e lógica ou que, horror dos horrores para a geração das maratonas do Netflix, jamais se deve soltar spoilers se você deseja prender a atenção do leitor da primeira à última página.
Bem, não há quase nada dessas regras de boa conduta ficcional no livro. O sujeito que resolver ler O Silmarillion antes de O Hobbit ou de O Senhor dos Anéis (foi esse o meu caso nos idos de 1998) terá diante de si uma seção inteira do volume, a última, batizada de “Dos Anéis de Poder e da Terceira Era”, que não passa de um grande spoiler do que ocorrerá nos dois romances mais famosos de Tolkien. E, mesmo nas seções anteriores do livro, a narrativa é constantemente afetada pela “sombra do futuro”: em alguma medida, já fica claro em que direção caminham os personagens (rumo a quantidades cavalares de sangue, suor e lágrimas, resumindo).
Teogonia, cosmogonia e guerra
Como escrevi alguns parágrafos atrás, a questão é que faz sentido que o livro tenha essa cara aparentemente tão esquisita e dificultosa, porque, atenção para o ponto crucial, ele não é um romance. O Silmarillion é a pedra fundamental do que Tolkien deseja que fosse sua “mitologia para a Inglaterra” (expressão usada por ele em uma de suas cartas a um possível editor, que acabou não publicando seus livros).
Como toda boa mitologia do mundo real, a nova mitologia inglesa criada pelo autor começa com uma teogonia e uma cosmogonia, ou seja, um relato das origens dos seres divinos e do Cosmos. Trata-se, a rigor, de uma visão reimaginada do nosso próprio Universo, no qual a única verdadeira divindade – Eru Ilúvatar, identificado com o Deus judaico-cristão – delega sua tarefa de Criador a “poderes angélicos” que se assemelham superficialmente aos deuses das mitologias que conhecemos.
Esses seres, os Valar, precisam enfrentar seu confrade mais poderoso, Morgoth, que se rebela contra o desígnio do Criador (qualquer semelhança com Lúcifer não é mera coincidência) e tenta dominar Arda, a Terra, e seus habitantes – elfos, anões, seres humanos e hobbits, entre outros.
Embora os elementos que citei tenham paralelos fáceis de enxergar com mitos pré-existentes e com a Bíblia, a combinação específica deles no livro dá à criação de Tolkien um sabor único. Como estudioso de línguas, manuscritos e narrativas antigas da Europa, ele conseguiu estruturar os ciclos de histórias de O Silmarillion de tal modo que eles parecem refletir uma longa história de transmissão cultural, com grande número de versões e variantes em prosa e verso (se você não gosta de poesia, a boa notícia é que quase não há poemas espalhados ao longo do texto em prosa, ao contrário do que acontece na Saga do Anel ou em O Hobbit).
De fato, a qualidade do texto em si está entre os grandes atrativos do livro: longe das descrições detalhadas de lugares e construções de O Senhor dos Anéis, a narrativa é econômica, às vezes seca, de um lirismo arcaico como os mitos que a inspiraram.
Cor-de-rosa? Sério?
Um ponto que vale a pena salientar está ligado a outra crítica recorrente, e altamente injusta, à visão de mundo de Tolkien. De novo, quem só conhece superficialmente O Hobbit e O Senhor dos Anéis por vezes se sente tentado a classificar o filólogo britânico como um otimista incorrigível, um sujeito doido para relatar finais felizes a qualquer custo.
O leitor que diz isso no caso dos livros mais conhecidos se apega ao fato de que “o Bem” vence neles, embora claramente não tenha prestado atenção no preço altíssimo que a Demanda do Anel cobra de Frodo; no fato de que o heroicamente leal Sam, com sua falta de tato, também é o responsável por eliminar a última chance de redenção de Gollum; e por aí vai.
As coisas são muito mais sombrias em O Silmarillion, porém. Uma frase enigmática da rainha élfica Galadriel na Saga do Anel – a de que ela e seu esposo Celeborn passaram milênios lutando “a longa derrota” contra as forças das trevas – fica abundantemente clara com a leitura do livro póstumo.
A narrativa principal da obra registra tantas desgraças e resistências heroicas fadadas ao fracasso que o leitor fica esperando que a qualquer momento apareça a frase “E todos morreram. FIM.” Os elfos retratados em tons quase sempre róseos em O Senhor dos Anéis se revelam perfeitamente capazes de guerras fratricidas, megalomania, incesto e genocídio durante a Primeira Era.
Os seres humanos incrivelmente longevos, poderosos e sábios da ilha de Númenor, a Atlântida tolkieniana, acabam embarcando numa carreira nada edificante de imperialismo e “satanismo” (ou “morgothismo”, para usarmos uma terminologia mais adequada ao mundo ficcional do autor, já que Morgoth é o equivalente de Satanás na obra) que os conduz à ruína. Há algo de podre no reino de Arda, em suma.
Tal retrato da “longa derrota” combina com o forte veio de pessimismo da personalidade de Tolkien, para quem a história humana do mundo real funcionava de acordo com mais ou menos esses mesmos princípios. Mas também é um veículo para que ele exponha uma das grandes lições que costumava depreender das antigas mitologias do norte da Europa.
Segundo o escritor, o conceito unificador desses mitos, de origem germânica/escandinava, era a “teoria da coragem do Norte”. Naquelas mitologias, vai acontecer uma espécie de Apocalipse, como nas narrativas judaico-cristãs, mas as profecias dizem que as forças das trevas vão vencer no final. É o que preveem, por exemplo, os textos sobre o Ragnarök (“destruição dos deuses” em nórdico antigo).
Mesmo assim, diz Tolkien num de seus textos teóricos mais famosos, os deuses escandinavos continuam lutando até o fim, e jamais acham que o fato de estarem fadados ao fracasso significa que deveriam mudar de lado. Essa lógica trágica e heroica está condensada de modo admirável em O Silmarillion. Só isso já faz valer a pena encarar as linhas mais complicadas do livro.
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