O uso de ‘biologismos’ no contexto da política

Reinaldo José Lopes

Como bem sabe o gentil leitor, sou um apaixonado pelas diferentes maneiras de comunicar ciência, e é sempre um prazer abrigar aqui no blog o trabalho de pesquisadores que enveredam por esse caminho. Recebi recentemente um texto muito interessante, que analisa o uso da linguagem da biologia para falar de política, e é com prazer que o publico neste espaço. O autor é o professor Marcelo M.S. Lima, do Departamento de Fisiologia da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e coordenador do Laboratório de Neurofisiologia da instituição. Boa leitura a todos!

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Sobre cientistas e jornalistas – o uso de “biologismos” no contexto político

O uso de termos de consagrado emprego biológico começou a ganhar destaque em função de coberturas jornalísticas da política nacional. Analistas, articulistas e repórteres em geral acostumaram-se a propagar uma série de adjetivos qualificadores das práticas políticas impróprias, ou mesmo delituosas, que recheiam, diariamente, o noticiário que recebemos.

Essa quase catacrese, no entanto, pode soar estranha para um cientista, tornando alguns desses termos alvo de uma breve reflexão. Cito aqui alguns que sempre me chamaram a atenção e até estranhamento ao vê-los nesse novo (agora nem tanto) contexto: infecção, degeneração, desnaturamento, paroxismo e, para mim o pior de todos, fisiologismo.

Vou me debruçar um pouco sobre esse último. Como neurofisiologista, não gosto desse termo por se tratar de uma derivação da palavra “fisiologia” acrescida de um sufixo carregado de significado político e/ou religioso, sendo, nesse contexto, utilizado para exprimir um controverso tipo de relação de poder político, a de troca de favores escusos.

A fisiologia é, por definição (segundo a Sociedade Americana de Fisiologia – APS), a ciência que estuda a vida, especialmente como as células, tecidos e organismos funcionam. Sendo assim, algumas perguntas -chave são feitas por essa ciência, por exemplo, como se dá o funcionamento e a interação entre células e seus tecidos, até o ponto de organismos inteiros, populações inteiras, interagirem mutuamente formando o mundo como o conhecemos. Nesse sentido, por que não atribuir também um papel filosófico a essa ciência que se propõe a explicar o funcionamento (biológico) de nossas vidas?

Voltando; essa dinâmica depende de um fenômeno, que emergiu em 1860, fruto de estudos do notável fisiologista francês Claude Bernard (pai da fisiologia moderna), o qual descreveu que todo e qualquer organismo, de uma célula individual a uma pessoa, deve possuir mecanismos fisiológicos de manutenção da constância de funcionamento de seus “meios internos”.

Essa dinâmica foi conceitualizada pelo termo “homeostase” que foi originalmente introduzido em uma publicação de 1926 cuja autoria foi do igualmente brilhante fisiologista americano Walter Cannon. Em resumo, a homeostase se aplica para indicar a manutenção de um equilíbrio frente as mais diversas e, aparentemente, imponderáveis interações às que um organismo pode estar submetido.

No entanto, essas interações célula/célula, célula/ambiente, pessoa/pessoa, pessoa/ambiente, podem, em algum momento, se desequilibrar e com isso estaremos diante de um contexto favorável ao aparecimento de doenças. Nasce aí um importante ramo da fisiologia, a fisiopatologia, que tem por missão investigar como, quando e por que as doenças surgem.

O jornalismo tem se dedicado com a mesma avidez que a ciência a investigar, apresentar e discutir semelhantes desequilíbrios, estes, porém, muito mais ligados à esfera ética, moral e legal, propriamente. Ou seja, essa esfera de desequilíbrios observadas frente às mais diversas interações: pessoa/pessoa, pessoa/empresa, pessoa/governo, empresa/governo, empresa/empresa, governo/governo deveria ser mais bem exprimida, à luz da fisiologia, dentro de uma lógica fisiopatológica e não fisiológica como tanto propagado em discursos, textos, reportagens, etc.

Insisto; ao evitarmos o uso do termo “fisiologismo” ou “fisiológico” para definir essas práticas ancoradas em deturpações morais e/ou legais, talvez substituindo por “quebra de homeostase” (política, ética ou moral), estaremos sendo mais fiéis ao fenômeno em si, sem ferir qualquer percepção de uma ciência tão fundamental quanto o é a fisiologia.

Ofereço aqui algumas possíveis explicações para entendermos a origem de tais “biologismos”. A primeira fundamenta-se numa observação que tomei conhecimento pela primeira vez, ainda quando criança, por intermédio de meu pai (João), que foi professor de língua portuguesa por mais de 35 anos na rede pública de ensino.

Quando nos deparávamos com os neologismos de Guimarães Rosa, variantes regionais (ele adorava a caipira) ou mesmo anglicismos (de que ele, de fato, não gostava muito), ponderava ele: “A língua é um ser vivo”. Entendo essa ideia como sendo o resultado da originalidade inata do ser humano sendo exercida na forma de um emprego engenhoso de palavras ou mesmo na criação de novos vocábulos. Ao usarmos esses recursos de linguagem estamos exercendo o poder de escolha, conferido por nosso fantástico córtex pré-frontal, para que assim deixemos uma marca provocativa em nossos interlocutores.

Convenhamos, uma ideia que possua em seu escopo uma provocação semântica marcante chamará muito nossa atenção, função esta também dependente do córtex pré-frontal. Ao atingirmos esse nível de recrutamento da atenção, invariavelmente iremos detonar respostas de emocionalidade das mais diversas, como raiva, medo, repulsa, alegria etc. (todas relacionadas a um complexo circuito cerebral chamado de sistema límbico).

O que define esse espectro de deflagração emocional frente a um mesmo conjunto de palavras, com potencial instigante, é função da variabilidade de experiências pregressas de seus interlocutores, resultado, portanto, de suas memórias afetivas, memórias episódicas (envolvem eventos e experiências) e memórias semânticas (relacionam fatos e conceitos). É inegável que esse mecanismo, como um todo, seja moldado por um vasto espectro cultural, social e econômico a que todos estamos expostos, ajudando-nos a entender com mais clareza a infinidade de impactos e reações que as palavras produzem nas pessoas. Sendo assim, o uso criativo da língua parece ser um elemento intrínseco para entendermos a aceitarmos o uso desses “biologismos”.

A outra explicação que apresento para a ressignificação desses termos biológicos recai sobre a natureza muito semelhante de abordagem, método e meios de comunicação que cientistas e jornalistas possuem.

Se não, vejamos; vou citar algumas características que julgo serem fundamentais em um bom cientista e que podem ser aplicadas, sem restrições, para um bom jornalista. São elas: (i) curiosidade incessante, (ii) grande poder de observação, (iii) senso crítico aguçado, (iv) método investigativo baseado na eliminação de fatores, um a um, (v) capacidade de enxergar o todo mesmo a partir de detalhes específicos, (vi) redação precisa, com argumentação assertiva e desprovida de paixões (esse último quase impossível), (vii) saber absorver e sobreviver às constantes frustrações, (viii) ética profissional permeando todas as anteriores.

Essas características, se sumarizadas, traduzem um forte espírito de busca por explicações de fatos e fenômenos. Pelo lado jornalístico é possível citar alguns filmes que tentam ilustrar um pouco desse espírito, como “Todos os Homens do Presidente”, “Spotlight – Segredos Revelados” e meu favorito, “The Post – A Guerra Secreta”. Do lado da ciência, a sétima arte já retratou essa essência com os ótimos “Uma Mente Brilhante”, “A Vida Imortal de Henrietta Lacks” e “O Jogo da Imitação”. Descontadas as hipérboles presentes nessas obras, creio que todas ilustram algumas dessas características compartilhadas por cientistas e jornalistas.

Sendo assim, tamanha sobreposição tornaria ambos formados por uma mesma essência de inconformismo e crítica, porém que se distingue nos cientistas, quanto à linguagem, pela aplicação hermética de um jargão e de terminologias que acabam por tolher uma possível liberdade poética ou uso mais criativo das palavras.

Nós cientistas, em nossas atividades e publicações, não podemos aceitar que um conceito ou um termo específico seja aplicado incorretamente, pois a definição dele, comumente, foi produto de anos de elaboração experimental e teórica, sendo que o conhecimento, naquela área, agora parte desse novo degrau e não do anterior. Esse ordenamento é necessário para que não entremos numa torre de babel a qual produziria uma anarquia improdutiva e paralisante para a geração do conhecimento.

Por outro lado, jornalistas parecem se divertir bem mais com a linguagem e a comunicação em geral do que os cientistas, que recheiam suas publicações com gráficos acinzentados e textos quase ininteligíveis para seus pares de outras áreas do conhecimento (tamanha a verticalização temática).

Essa maior ludicidade jornalística torna um ensaio como este aqui quase como um parquinho (para não dizer playground) para um cientista como eu. Portanto, concluo que a rigidez terminológica, essencial para a ciência, não precisa ser aplicada, com a mesma magnitude, em textos informativos, já que na grande maioria dos casos o leitor não se importará com “biologismos” ou mesmo outras aplicações criativas da língua.

Porém, é preciso salientar que tamanha liberdade (sempre desejável), pode, por vezes, ser um convite a distorções conceituais ou mesmo incorreções mais graves, trazendo um inerente prejuízo ao leitor. Logo, o antídoto para isso me parece estar contido nas características que elenquei há pouco, particularmente na redação precisa e com argumentação assertiva, assim como na conduta ética e cuidadosa frente ao que é apresentado.