Os argumentos em favor da existência de Deus: de Gödel aos computadores

Reinaldo José Lopes

É com imensa alegria que recebo mais uma vez aqui no blog os textos escorreitos, informativos e divertidamente contraintuitivos do professor Walter Carnielli, do Centro de Lógica da Unicamp. Desta vez, ele faz uma análise da lógica formal por trás de um dos mais famosos argumentos em favor da existência de Deus, um debate que vem pelo menos desde meados da Idade Média, com uma pitadinha de inteligência artificial no fim do texto. Aproveitem a leitura!

——————–

Os axiomas de Deus, o Maligno e a inteligência artificial

Walter Carnielli
Centro de Lógica, Unicamp
Advanced Institute for Artificial Intelligence -AI2
Instituto Modal

O nome de Kurt Gödel (1906-1978) pode não significar muito para algumas pessoas, mas entre os cientistas ele tem uma reputação semelhante à de Albert Einstein, que era seu amigo próximo. Nascido em 1906 na cidade de Brno, no que era então o Império Austro-Húngaro e agora é território tcheco, Gödel estudou em Viena antes de se mudar para os Estados Unidos fugindo da guerra, onde obteve uma posição em Princeton, local que também acolhera Einstein.

Gödel é o responsável pelos celebérrimos Teoremas da Incompletude da Aritmética, que têm tirado o sono dos matemáticos, filósofos e todos os outros cientistas por 88 anos, desde 1931. Esse mesmo Gödel foi quem produziu a mais sofisticada versão da prova ontológica da existência de Deus, em notas datadas de 1941. Contudo, só no início dos anos 1970, quando Gödel temia que pudesse morrer, foi que ele autorizou que sua prova se tornasse pública pela primeira vez.

Argumentos ontológicos são argumentos que concluem que Deus existe a partir de premissas que supostamente derivam de alguma outra fonte que não a observação do mundo — no caso, derivadas apenas da razão.

A prova ontológica de Gödel é um argumento formal (para quem se interessa, formulado na lógica modal S5 de ordem superior), mas não vamos espantar o leitor com isso. A prova segue e melhora uma linha de desenvolvimento que remonta a Anselmo de Cantuária ou de Canterbury (1033-1109).

O argumento ontológico de Santo Anselmo, em sua forma mais sucinta, como aparece em sua obra “Proslogion”, é o seguinte: “Deus, por definição, é aquele do qual nada maior pode ser concebido. Deus existe no entendimento. Se Deus existe no entendimento, poderíamos imaginá-lo ainda maior se existisse na realidade. Portanto, Deus deve existir na realidade “.

O raciocínio por trás desse argumento é conhecido como “redução ao absurdo”; de fato, se Deus não existisse na realidade, esse raciocínio levaria a um absurdo: poderíamos conceber um ser maior do que Deus, limitado apenas ao entendimento. Assim, um ser do qual nada maior pode ser concebido — isto é, Deus — deve forçosamente existir.

No milênio entre Anselmo e Gödel, muitos filósofos, teólogos e outros estudiosos criticaram, modificaram e melhoraram o argumento de Anselmo, incluindo aí Descartes, Spinoza e Kant. De particular importância para Gödel foi o trabalho de Gottfried Leibniz (1646-1716); essa é a versão que Gödel estudou e tentou esclarecer com seu argumento ontológico.

Os detalhes da matemática envolvidos na prova ontológica de Gödel são relativamente complicados, mas em essência seus teoremas e axiomas — suposições que não podem ser provadas mas que são aceitas como verdades básicas — podem ser expressos em linguagem comum. Os principais pontos desse que pode ser considerado um dos maiores teoremas da matemática, nada menos que o teorema da existência de Deus, são os seguintes “Axiomas de Deus”:

– Axioma 1: Se A é uma qualidade positiva (isto é, muito boa), e necessariamente ter a propriedade A implica ter a propriedade B, então B é também uma propriedade positiva.

Tal axioma pode ser entendido como a afirmação de que apenas coisas positivas decorrem de coisas positivas. Propriedades realmente boas não podem acarretar propriedades ruins.

– Axioma 2: Se A é uma qualidade positiva, então o oposto de A é ruim. Da mesma forma, se A é ruim, então o oposto de A é uma qualidade positiva.

Esse axioma afirma que qualquer propriedade é positiva ou sua negação é positiva. Em outras palavras, não existem coisas como propriedades neutras ou intermediárias.

– Axioma 3: Ser divino é uma qualidade positiva.

Esse axioma afirma que a propriedade de algo ser divino é uma propriedade positiva.

– Axioma 4: Se uma qualidade é positiva, é necessariamente positiva.

Esse axioma afirma que, se uma propriedade é positiva, isso tem de ser assim; isto é, a propriedade tem de ser necessariamente positiva. Não seria positiva por acaso, ou contingentemente.

– Axioma 5: A existência de coisas com qualidade positiva (isto é, muito boas) é ela própria de qualidade positiva.

A partir daí pode-se provar um teorema mais ou menos esperado que diz o seguinte:

Teorema 1 (Coisas boas acontecem): Se A é uma propriedade positiva, então é possível que exista algo que tenha essa propriedade A.

Aparece então a definição formal de divindade. Algo é divino se ele tem todas as propriedades positivas. Aplicando o Teorema 1 ao Axioma 3, provamos o:

Teorema 2 (Ateísmo absoluto é impossível): É possível que algo divino exista.

Gödel define então o que é uma propriedade essencial e, através de alguns passos mais complicados, usando o Axioma 2 e o Axioma 4, prova o:

Teorema 3 (A essência do Divino): Se algo é divino, ser divino é sua essência.

Define-se então algo como indispensável quando esse algo, com sua essência (quando tem uma essência), deve existir. A partir daí, pelo Axioma 5, podemos obter o grande final:

Teorema 4 (Existência de Deus): Algo divino necessariamente existe.

A parte difícil, que é onde Gödel refina todos os argumentos anteriores, é a seguinte: estabelecemos que é possível que Deus exista (Teorema 1). Em outras palavras, podemos imaginar um mundo onde Deus exista. Também aceitamos, pelo Axioma 4, que, se algo é divino, sua existência é necessária.

Isso significa que o fato de podermos conceber um “objeto divino” em nossa imaginação necessariamente força sua existência no mundo real. Caso contrário, nossa concepção dele é logicamente incoerente. Estes passos estão formalizados na passagem do Teorema 2 (Ateísmo absoluto é impossível), que atesta a possibilidade da existência de Deus, para o Teorema 3, que salta para a necessidade da existência de Deus.

Em termos intuitivos, essa é a essência destilada da maioria das provas ontológicas: basicamente, existir é bom, e Deus é bom, então, uma vez que podemos conceber um Deus, isso leva sua existência para fora do mundo de nossa imaginação, ou seja, para o mundo real, porque, do contrário, nossa capacidade de raciocínio seria logicamente incorreta— e se assim for, não tem sentido nem mesmo pensar. No caso de Gödel, tudo isso é refinado e matematizado, evitando-se as armadilhas da linguagem natural.

Há, como deveríamos esperar, dúzias de objeções contra a prova de Gödel. O “corolário do Diabo” propõe que um ser do qual nada pior possa ser concebido existe no entendimento. Usando a forma lógica de Anselmo, o argumento conclui que, como existe esse ser maligno no entendimento, um ser pior ainda seria aquele que existe na realidade; assim, tal ser existe.

Mas a prova sofisticada de Gödel não permite isso. Há no sistema de Gödel uma assimetria entre positividade e negatividade em favor da positividade, o que evita que se possa usar um argumento semelhante ao de Gödel para provar a existência do Diabo. Pelo menos um conforto resultante da lógica moderna!

É duvidoso que Gödel acreditasse ter encontrado a prova final e irrefutável da existência de Deus. Seu profundo interesse na prova ontológica, em vez disso, era sua intenção de defender o teísmo de Leibniz. As premissas de Gödel, mais tarde, mostraram conter um pequeno problema lógico conhecido como colapso modal.

Gödel compartilhou um manuscrito com o matemático Dana Scott nos anos 1970. Quando Scott circulou a prova conhecida para outras pessoas, ele deu a elas uma versão ligeiramente diferente, adicionando um pequeno ponto que corrigia Gödel, mas que passou despercebido.

Por mais de quatro décadas, um agente não humano percebeu um outro pequeno erro, cujas consequências permaneceram despercebidas, apesar de inúmeras análises e críticas do argumento.

Os seres humanos não notaram o erro apesar de anos de atenção à prova, até que um provador de teorema automatizado, em 2016, foi capaz de detectar a inconsistência em segundos. Esse trabalho foi liderado por dois lógicos especialistas em inteligência artificial, sendo um deles o brasileiro Bruno Woltzenlogel Paleo, à época trabalhando em Viena.

Essa participação de uma máquina no argumento mais refinado que a natureza humana já pôde produzir a respeito da religião é altamente relevante para a atividade científica, pois mostra, para além do fato que uma lenda matemática como Kurt Gödel, conhecido por sua atenção à precisão, pode cometer erros, que máquinas podem cooperar positivamente com o interesse humano. Nem sempre cooperam, mas podem cooperar.

E a vantagem de um sistema tão sofisticado quanto o de Gödel para uma das questões mais fundamentais da natureza humana é que, se alguém não aceita que a matemática prova a existência de Deus, menos ainda ela prova a existência do Maligno.

Referências:

J. N. Findlay. Can God’s existence be disproved? Mind 57 (226):176-183 (1948)

Ch.Benzmüller and B. W. Paleo. The Inconsistency in Gödel’s Ontological Argument:A Success Story for AI in Metaphysics. Proceedings of the Twenty-Fifth International Joint Conference on Artificial Intelligence (IJCAI-16)

Yujin Naga. The ontological argument and the Devil. The Philosophical Quarterly Vol. 60, No. 238 ISSN 0031-8094 January 2010 doi: 10.1111/J.1467-9213.2008.603.