A Origem das Histórias: evolução humana, ficção, fantasia e ciência
Seres humanos, em todas as épocas e lugares, são apaixonados por contar histórias imaginadas, tanto as “realistas” quanto as que envolvem fantasia ou ficção científica. Como diabos isso aconteceu conosco ao longo da evolução, e como ciência e ficção podem dialogar? Tentei abordar brevemente esses temas numa palestra que proferi durante a 23a. Jornada de Letras da UFSCar, aqui em São Carlos (SP). Abaixo, temos a íntegra do áudio da minha fala, em formato de vídeo do YouTube (é, eu sei que é estranho).
Abaixo, os trechos de livros lidos durante a palestra.
J.R.R. Tolkien, Sobre Estórias de Fadas (a tradução é minha, deve sair no ano que vem):
“A mente encarnada, a língua e a estória são, no nosso mundo, coevas. A mente humana, agraciada com os poderes da generalização e da abstração, vê não apenas grama-verde, discriminando-a de outras coisas (e achando-a bela de contemplar), mas vê que é verde bem como é grama. Mas quão poderosa, quão estimulante para a própria faculdade que a produziu, foi a invenção do adjetivo: nenhum feitiço ou encantamento em Feéria é mais potente. E isso não é surpreendente: tais encantamentos poderiam, de fato, ser considerados apenas outra visão dos adjetivos, uma classe de palavras numa gramática mítica. A mente que pensou em leve, pesado, cinza, amarelo, parado, veloz também concebeu magia que tornaria as coisas pesadas leves e capazes de voar, transformaria chumbo cinza em ouro amarelo, e a pedra parada em água veloz. Se podia fazer uma coisa, podia fazer a outra: inevitavelmente fez ambas. Quando conseguimos abstrair o verde da grama, o azul do céu e o vermelho do sangue, temos já um poder encantatório – em certo plano; e o desejo de empunhar esse poder no mundo externo às nossas mentes desperta.”
Sidarta Ribeiro, O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho:
“Os mitos sobre a origem do mundo, muito recentes na evolução da espécie, derivam da expansão sem precedentes da nossa capacidade de representar entidades reais e imaginárias, humanas e feras, sincretizadas aos nossos ancestrais. Foi quase inevitável a mistura com outros seres, plantas e acidentes geográficos, pois durante o sonho nada impede que essas representações se fundam. Naturalmente essa fabulosa fauna mental se apresentou em inúmeras manhãs à consciência vígil de nossos ancestrais boquiabertos. A consequência foi a ampla prevalência do zoomorfismo na cultura humana. Desde que somos gente, somos bicho.”
Edward Osborne Wilson, O Futuro da Vida:
“Legamos a vocês as selvas sintéticas do Havaí e a vegetação rasteira onde antes vicejava a prodigiosa Floresta Amazônica, junto com alguns remanescentes de habitats selvagens aqui e ali, que escolhemos não destroçar. O seu desafio é criar novos tipos de plantas e animais por meio da engenharia genética e, de algum modo, encaixá-los juntos em ecossistemas artificiais de vida livre. Entendemos que um feito desses pode se mostrar impossível. Estamos certos de que, para muitos de vocês, o mero fato de pensar nisso provocará repugnância. Boa sorte. E, se forem em frente e tiverem sucesso em tal empreitada, lamentamos que aquilo que manufaturarem nunca poderá ser tão satisfatório quanto a criação original. Aceitem nossas desculpas e esta biblioteca audiovisual que ilustra o mundo maravilhoso que costumava existir.”
Robert Sapolsky, Memórias de Um Primata:
“E a peste levou Saul, que morreu em meus braços, como descrevi numa história anterior.
E a peste levou Davi.
E Daniel.
E Gideão.
E Absalão.
E a peste levou Manassés, que morreu na frente de um grupo de funcionários do hotel, que gargalharam ao vê-lo sofrer.
E a peste levou Jessé.
E Jônatas.
E Sem.
E Adão.
E a peste levou meu Benjamim.”
Reinaldo José Lopes, 1499: O Brasil Antes de Cabral:
“Acho impossível que um habitante das primeiras décadas do século 21 tenha ficado imune à atual onda de narrativas de ficção (nas livrarias, no cinema, na TV, na internet) que andam nos soterrando com imagens “pós-fim do mundo”. São quadrinhos que viram série de televisão, best-sellers para adolescentes que viram filme e incontáveis outras variações do mesmo tema: Jogos Vorazes, The Walking Dead, Divergente e até a ressurreição de Mad Max (sou capaz de apostar que você consegue ao menos dobrar o número de itens dessa lista sem muito esforço). De repente, a chamada distopia pós-apocalíptica – ou seja, a ideia de que, para todos os efeitos, o mundo como o conhecíamos acabou, e os sobreviventes da catástrofe vivem num ambiente assustador e brutalmente transformado – parece ter ganhado o status de gênero narrativo dominante de nosso tempo. O que direi agora pode soar como maluquice, mas esse tipo de cenário talvez seja um excelente jeito de entender, em termos imaginativos, o significado do “fim da pré-história” (coloque muitas aspas aí, é claro) para os povos nativos das Américas e, em particular, do Brasil.
Não se trata apenas de frase de efeito. Como este é o momento de amarrar as pontas da nossa história, peço que você recorde um ponto que abordamos nas distantes primeiras páginas da introdução deste livro: a ideia, ainda muito influente, de que as sociedades nativas do futuro Brasil eram simples, pouco populosas, móveis, isoladas e presas num “eterno presente” no qual nunca havia mudanças significativas. Esse retrato poderia até fazer certo sentido se a intenção fosse descrever alguns dos grupos que travaram contato com exploradores ocidentais na Amazônia entre o fim do século 19 e os anos 1970 do século 20, mas ainda assim ele é tremendamente enganoso porque, no fundo, refere-se a sobreviventes de um apocalipse em miniatura. Nesse filme de época, infelizmente, os zumbis devoradores de gente são os brasileiros de origem europeia, enquanto o papel das tribos amazônicas não é muito diferente do dos mocinhos de The Walking Dead; vale dizer, o de gente tentando manter algum simulacro do funcionamento original de sua sociedade quando as estruturas políticas forjadas por seus ancestrais e a maior parte da população à qual pertenciam já tinham virado fumaça.”
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