Design Inteligente: vícios de origem do neocriacionismo
Estamos de volta com mais uma série de fôlego no blog. Desta vez, meu objetivo é apresentar uma crítica da defesa do DI (Design Inteligente) feita recentemente, em artigo nesta Folha, pelo professor Marcos Eberlin, químico da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Para quem não sabe, a hipótese do Design Inteligente é uma vertente do pensamento criacionista que busca usar métodos da ciência moderna (com ênfase especial na bioquímica) para identificar sinais de um projeto inteligente ou “design” nos seres vivos. A ideia é mostrar que a teoria da evolução se assenta sobre bases empíricas frágeis e, portanto, deveria ser abandonada em favor da hipótese da ação de um designer cósmico que pode ou não ser identificado com o Deus das religiões tradicionais.
O texto do professor Marcos, como eu já disse pessoalmente a ele por meio de nossas redes sociais, pareceu-me uma simples lista de nomes e conceitos que apoiariam o DI, sem uma tentativa de argumentação. Pretendo mostrar aqui que essa lista nem de longe fortalece a posição do DI — aliás, revela que ele jamais se sustentou nem dá sinais de que algum dia há de se sustentar como alternativa CIENTÍFICA à teoria da evolução.
Como a lista do artigo original é gigantesca e não diz quase nada para o leitor que não está familiarizado com o (suposto) debate, precisarei fazer uma série de posts, mas tentarei compensar a falta de concisão com o máximo possível de clareza explicativa. Contudo, antes de mergulhar nos exemplos propriamente ditos, acho que é importante passar a limpo alguns pressupostos básicos:
1)O Design Inteligente não nasceu como um movimento científico
É isso o que estou chamando de “vício de origem” no título do post. Podem ou não existir cientistas sérios que abraçam a ideia hoje (daí a abraçá-la por boas razões é outra história), mas é público e notório que o DI foi pensado como estratégia da “guerra cultural” americana, com o objetivo de oferecer à população dos EUA o que seus criadores consideram uma alternativa filosófica e espiritual ao “materialismo” da ciência moderna. Os dados científicos que supostamente apoiam o DI não vieram primeiro: o que veio primeiro foi a visão filosófica — e, em larga medida, religiosa.
Essa lógica está por trás da chamada “Estratégia da Cunha” gestada pelo Instituto Discovery (parceiro do trabalho do professor Marcos no Mackenzie) ao longo dos anos 1990. A tal “cunha” é a própria ideia de DI, que serviria para abrir caminho, dentro da ciência, a um retorno à visão cristã tradicional de que os seres humanos e o Universo foram criados diretamente por Deus, derrotando assim os “males do materialismo científico”. Como disse um dos arquitetos da estratégia, o professor de direito Phillip Johnson, que morreu em 2019:
“Se compreendermos nossa própria época, saberemos que é preciso afirmar a realidade de Deus desafiando o domínio do materialismo e do naturalismo no mundo da mente. Com a ajuda de muitos amigos, desenvolvi uma estratégia para fazer isso, que chamamos de ‘cunha’.”
Ou como diz o matemático William Dembski, outro expoente do movimento:
“Cristo é indispensável para qualquer teoria científica, mesmo se os que trabalham com ela não tenham a menor ideia sobre Jesus. O lado pragmático de uma teoria científica pode, é claro, ser seguido sem recorrer a Cristo. Mas a correção conceitual da teoria só pode, no fim das contas, ser encontrada em Cristo.”
É claro que isso, por si só, não mostra que os argumentos do DI estão errados. Mostra apenas que ele não é um movimento científico desinteressado que toma os dados experimentais como ponto de partida. Pelo contrário, seu ponto de partida é filosófico e religioso.
2)A relação entre o DI e o criacionismo tradicional é de parentesco estreito
A maioria dos membros do DI nos EUA e no mundo defendeu posições do criacionismo tradicional (em geral, o da Terra jovem, segundo o qual a Terra e o Universo têm poucos milhares de anos, conforme a leitura literal da Bíblia). O livro didático americano “Of Pandas and People”, cujas versões publicadas defendem o DI e foram objeto de decisões judiciais contrárias a elas nos EUA na década passada, inicialmente usava a palavra “criacionismo” no lugar de “design inteligente” em seus rascunhos.
Seria, portanto, interessante que os defensores do DI esclarecessem exatamente em qual modelo das origens do Universo, da Terra e da vida realmente acreditam antes de apenas lançar dúvidas sobre a teoria da evolução. Não adianta muito dizer que agnósticos ou ateus ou defensores da teoria dos Deuses Astronautas também se dizem defensores do DI. Essas exceções não mudam o fato de que, em geral, há uma relação estreita entre o teísmo literalista (em geral literalista bíblico cristão) e o movimento.
Por enquanto é isso. Voltaremos em breve com mais posts sobre o tema.
————–
Conheça o canal do blog no YouTube
Siga-me nas redes sociais: Facebook (do blog), Facebook (pessoal), Twitter, Instagram