A epigenética e os impactos sobre o comportamento para além dos genes

Reinaldo José Lopes

É com prazer que recebo aqui no blog mais um texto de divulgação científica produzido por alunos de pós-graduação da UFSCar, a gloriosa Universidade Federal de São Carlos, praticamente minha vizinha de porta. Desta vez, Natalia Marques Rosa e a professora Patrícia Domingues de Freitas detalham alguns conceitos fundamentais da epigenética, a área de pesquisa que estudo os impactos dos padrões de ativação e desativação dos genes, e seus possíveis impactos sobre o comportamento de roedores e humanos. Confira abaixo!

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Epigenética: comportamento para além dos genes

Por Natalia Marques Rosa e Patrícia Domingues de Freitas

Não é novidade que o material genético é responsável pelas informações fundamentais da nossa formação, desenvolvimento e características individuais, incluindo nosso comportamento. Mas serão os genes os únicos responsáveis por sermos quem somos, ou a interação dos mesmos com múltiplos fatores também tem um papel importante na determinação de nossas características? Esse debate, conhecido no meio científico como “Nature versus Nurture” (inato versus adquirido), impulsionou a busca por diferenças entre essas duas frentes. À medida que os estudos avançam, no entanto, as discussões estão sendo cada vez mais direcionadas para entender melhor como os genes interagem com o ambiente para determinar quem somos no contexto “Nature via Nurture”, ou seja, os contextos ambientais influenciando como a natureza de cada indivíduo se manifesta.

A ciência já demonstrou que a interação entre genes e o ambiente permite a expressão de fenótipos (características) diferentes daqueles esperados. Um dos elos que nos auxilia na compreensão das interações genótipo-ambiente-fenótipo é um conceito introduzido pelo biólogo Conrad Waddington nos anos 1940, que propiciou o surgimento da epigenética, um ramo das ciências biológicas que vem sendo melhor compreendido nos últimos anos devido, principalmente, ao desenvolvimento de diferentes métodos de análise molecular, incluindo o estudo de genes e interações moleculares.

A epigenética estuda os processos químicos que ocorrem nas células dos organismos e que regulam o funcionamento dos genes, sem que haja alteração na sequência de nucleotídeos (“letras” químicas) que compõe o trecho de DNA correspondente àquele gene. Esses processos, chamados de mecanismos epigenéticos, podem ativar ou silenciar genes e, dessa forma, expressar ou não determinados fenótipos (características biológicas). Assim, no contexto epigenético, poderíamos explicar as diferentes personalidades de gêmeos idênticos que foram expostos a experiências ambientais e emocionais distintas? Sim!

Esse questionamento vem sendo estudado por pesquisadores interessados em compreender como o meio e os eventos epigenéticos, que modificam a estrutura do DNA, geram fenótipos distintos do esperado para diversos traços biológicos herdáveis, incluindo o comportamento, característica biológica complexa que compreende o conjunto de respostas de um sistema biológico extremamente dinâmico frente a interações externas e internas.

Lambidas de roedores

Michael J. Meaney, pesquisador da Universidade McGill, no Canadá, demonstrou que as experiências ambientais podem afetar o comportamento de um indivíduo devido a interações químicas que ocorrem em seu material genético. Para isso, ele estudou o cuidado materno em camundongos, avaliando um conjunto de comportamentos desempenhados pela mãe que possibilitam a sobrevivência dos filhotes e consequentemente o sucesso reprodutivo. O ato de lamber os filhotes, conhecido no meio científico como “licking”, consiste em um desses comportamentos.

Os estudos realizados por Meaney e colaboradores mostraram que ratas que lambiam os seus filhotes geravam crias que também manifestavam esse comportamento quando se tornavam mães. Por outro lado, filhotes de ratas que não lambiam suas crias não expressavam esse comportamento com sua prole. Nesse estudo, ficou demonstrado também que filhotes de ratas que não lambiam a cria, quando sob cuidado de mães adotivas que apresentavam o comportamento de licking, lambiam seus filhotes quando tornavam-se mães.

A grande questão a ser esclarecida por Meaney foi se a mudança de comportamento observada na característica comportamental avaliada devia-se à contribuição genética ou ao aprendizado adquirido. Com a continuidade das pesquisas, e o estudo do cérebro dos animais, Meaney mostrou que as experiências ambientais vivenciadas pelos filhotes implicavam no desligamento ou na ativação de genes responsáveis por determinar o comportamento de licking. Embora a sequência do gene (ou seja, as “letras” de DNA propriamente ditas) permanecesse inalterada, ele poderia ser silenciado por um mecanismo denominado metilação do DNA, conhecido hoje como um dos principais fenômenos epigenéticos, ou seja, que geram fenótipos diferentes dos esperados para os genes.

A metilação de um gene ocorre quando um composto químico formado por uma molécula de carbono e três de hidrogênio (CH3-), chamado grupo metil, se liga a uma região específica do DNA. Esse evento pode impedir a manifestação de uma característica a partir da supressão da expressão de um gene, mesmo quando este está presente em um indivíduo. Nas ratas do experimento de Meaney, o gene para licking estava presente, mas era o ambiente que determinava ou não a sua expressão. Em ambientes sob estresse, o gene era “metilado” e consequentemente “silenciado”. Por esse motivo, as fêmeas que apresentavam o gene para lamber a sua cria, em ambientes estressantes, não manifestavam esse comportamento. Se, no entanto, o gene deixasse de ser metilado, o comportamento de lambedura ocorria em altas taxas.

Essas pesquisas mostraram que embora o cuidado materno seja uma característica geneticamente determinada, o meio pode promover alterações na sua manifestação, caso eventos epigenéticos como a metilação ocorram. Assim, filhotes adotados expressavam seus fenótipos de acordo com o ambiente em que se encontravam e não devido à informação de seu genótipo, ou seja, contida na sequência de DNA de seus genes.

Embora as modificações epigenéticas não alterem a sequência de nucleotídeo dos genes, elas alteram sua expressão, podendo ocorrer em diferentes fases da vida dos seres vivos, e serem transmitidas ao longo das gerações, de pais para filhos. Dessa forma, os filhos podem herdar o comportamento de seus pais e, posteriormente, esses comportamentos podem ser revertidos devido a uma nova modificação epigenética, que eventualmente venha a ocorrer devido à influência do meio.

Ansiedade e depressão em camundongos

Achou complexo? Pois é, estudar os genes, e a forma como eles atuam e interagem para manifestar características biológicas tão complexas quanto as envolvidas no comportamento, é um dos grandes desafios da ciência e foco dos estudos desenvolvidos pelo grupo de pesquisa liderado pela bióloga Andréa Cristina Peripato, professora da UFSCar, que coordena o Laboratório de Genética de Comportamento do Departamento de Genética e Evolução.

Nos últimos anos, Peripato tem tentando entender qual a relação entre experiências ambientais que favorecem o bem-estar com o reflexo comportamental ansioso e depressivo e o cuidado materno de camundongos. Essas pesquisas em ciência básica visam reforçar que as modificações epigenéticas podem ocorrer ao longo da história de vida dos indivíduos e que o ambiente é um importante componente para assegurar a manifestação de características comportamentais saudáveis e, consequentemente, o bem-estar animal.

Em um estudo específico envolvendo os Programas de Pós-Graduação em Genética Evolutiva e Biologia Molecular (PPGGEV) e em Conservação da Fauna (PPGCFau), ambos da UFSCar, Peripato e seu time de pesquisadores investigam o comportamento de animais mantidos em cativeiro em ambientes enriquecidos e não enriquecidos.

O enriquecimento ambiental tem sido utilizado por inúmeras instituições que mantêm espécies sob cuidado humano, como uma estratégia eficiente para assegurar o bem estar animal. Nessa pesquisa, traços relacionados à emocionalidade, como ansiedade e depressão, são avaliados em camundongos, frente a estímulos ambientais monitorados. No caso do cuidado materno, por exemplo, comportamentos como aqueles envolvidos na construção de ninho e ejeção de leite são analisados em diferentes fases da vida desses animais, e os resultados comportamentais obtidos em ambientes enriquecidos e não enriquecidos são comparados entre si e correlacionados com dados moleculares obtidos sobre os genomas dos animais avaliados.

Peripato diz que a utilização de enriquecimento ambiental pode trazer grandes benefícios para a emocionalidade das mães e da prole, favorecendo o cuidado materno por meio de comportamentos que irão assegurar o melhor desenvolvimento dos filhotes nas fases iniciais de vida. A pesquisadora ressalta ainda que, através dos mecanismos epigenéticos, o comportamento das mães pode modular a emocionalidade e o comportamento dos filhotes no futuro, quando esses também se tornarem mães. Peripato conclui que, embora esses estudos estejam sendo desenvolvidos em camundongos, essas informações podem ser extrapoladas para outras espécies que são mantidas em espaços confinados ou limitados.

Para além desses estudos, estamos nós, Homo sapiens, vivendo um atual momento de confinamento. Saber que o nosso entorno, incluindo o ambiente físico e afetivo, pode alterar a expressão de nossos genes, e nossa emocionalidade, através de eventos epigenéticos, é extremamente relevante, principalmente dado o seu caráter de reversibilidade. Assim, manter boas relações pessoais e optar por um estilo de vida saudável, que propicie bem estar físico e emocional, pode ser determinante para manifestação de características desejáveis, independentemente do que dizem os nossos genes.

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