Mutações no nosso segundo genoma e seus efeitos sobre a fertilidade
Mais uma vez, é com imenso prazer que recebo por aqui os textos de divulgação científica dos alunos de pós-graduação da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos, minha vizinha), do Programa de Genética Evolutiva e Biologia Molecular, sob orientação da professora Patrícia Domingues de Freitas. Além dela, os autores do texto são Mateus Priolo Grejo e José Djaci Augusto Neto. O trio explica os efeitos sobre a fertilidade ligados a modificações no nosso “segundo genoma”, o DNA presente nas usinas de energia celulares conhecidas como mitocôndrias. Boa leitura!
———————
Doenças neuromusculares e fertilidade: o que as mitocôndrias têm a ver com isso.
Por Mateus Priolo Grejo, José Djaci Augusto Neto e Patrícia Domingues de Freitas
Nossas células possuem diversas organelas, as quais desempenham funções variadas. Entre estas estão as mitocôndrias, subunidades celulares que possuem o importante papel de produzir energia. Essa organela é tão importante que possui um genoma próprio, conhecido como mitogenoma ou genoma mitocondrial, que difere daquele encontrado no núcleo. Embora o DNA nuclear (DNAn) seja responsável por um maior número de características nos indivíduos, alterações no DNA mitocondrial (DNAmt) podem desencadear muitas doenças em humanos, incluindo diabetes, distrofias musculares, Alzheimer e Parkinson, além de infertilidade.
Segundo o especialista em doenças mitocondriais Weiwei Fan, pesquisador do Centro de Medicina Mitocondrial da Califórnia (EUA), cerca de uma a cada cinco mil pessoas no mundo são afetadas por doenças nas quais mutações no genoma mitocondrial são causa primária. Um exemplo são as neuromiopatias, distúrbios que afetam simultaneamente o sistema nervoso e os músculos. Portanto, estudar as mitocôndrias e os mecanismos envolvidos com o pleno desempenho de suas funções é essencial para entender e tratar alguns tipos específicos de doenças.
Dentre as diversas possibilidades de estudo das mitocôndrias, seus genes e proteínas, está a análise de um ou mais tipos celulares, incluindo os óvulos, células gaméticas, restritas ao sexo feminino, que apresentam o maior número de mitocôndrias e, portanto, maior quantidade de DNAmt.
Herança matrilinear, distúrbios mitocondriais e infertilidade
Na maioria das espécies com reprodução sexuada, os óvulos são grandes e bem maiores que os espermatozoides. Por esse motivo, no momento da fecundação, grande parte das organelas de um óvulo, incluindo suas mitocôndrias, permanecerá no novo indivíduo formado. Já os espermatozoides são células diminutas, que doam, quase que exclusivamente, somente o núcleo celular. Nesses organismos, o óvulo é o único responsável por transmitir o DNAmt para sua descendência, caracterizando um modo de herança muito particular, conhecido como herança matrilinear.
Se, em princípio, as mitocôndrias de um indivíduo são herdadas somente do óvulo materno, qualquer erro presente no genoma mitocondrial dessa célula será transmitido à sua descendência. Assim, a funcionalidade das mitocôndrias de um indivíduo dependerá, em parte, da integridade do DNA mitocondrial herdado da mãe, embora novos defeitos possam surgir durante a formação e desenvolvimento de um indivíduo.
As mitocôndrias participam de diversos processos celulares e, durante esses eventos, o mitogenoma fica exposto a quebras e modificações em sua estrutura, as quais podem resultar na ruptura de ligações que mantém as duas fitas de DNA unidas em dupla hélice. Estas quebras da dupla fita, denominadas DSBs, do inglês “double strand breaks”, ocorrem devido às funções celulares, envelhecimento natural, e também a agentes externos, como compostos químicos e exposição à luz ultravioleta. Se esses danos no DNA não forem reparados, o funcionamento adequado da célula é comprometido, ocasionando diversas doenças e inclusive a morte celular. Assim, se um óvulo acumular um grande número de danos em seu mitogenoma, poderá ocorrer a sua inviabilidade e consequente infertilidade.
Mitogenoma e proteínas de Reparo
O principal mecanismo de reparo de quebras no DNA envolve uma grande e complexa maquinaria proteica, que restaura a integridade da molécula de forma precisa. Neste processo, conhecido como “recombinação homóloga”, uma proteína chamada Rad51 tem função central no reparo do dano. Até a primeira década do início do século XXI, a Rad51 havia sido observada pelos cientistas exclusivamente no núcleo celular. Em 2010, no entanto, o grupo de pesquisa coordenado pelo bioquímico Jay M. Sage, da Escola de Medicina da Universidade de Massachusetts (EUA), encontrou essa proteína também na mitocôndria, sugerindo sua participação no reparo do mitogenoma. Passados 10 anos desde essa descoberta, a função da Rad51 na mitocôndria, no entanto, ainda não foi totalmente desvendada. Esse fato se deve, principalmente, à falta de observação de outras proteínas participantes do reparo de DSBs, também na mitocôndria.
Para compreender melhor aspectos relacionados à função da Rad51 e de mecanismos moleculares envolvidos com a herança mitocondrial, transmissão de doenças e fertilidade feminina, o grupo de pesquisa do Laboratório de Genética e Biotecnologia (LaGenBio; http://www.lagenbio.ufscar.br/), coordenado pelo zootecnista Marcos Roberto Chiaratti, professor do Departamento de Genética e Evolução da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), tem desenvolvido estudos nessa temática.
Segundo Chiaratti, através do tratamento de óvulos afetados pode-se evitar a transmissão de mitocôndrias disfuncionais para a geração seguinte, prevenindo o surgimento de distúrbios mitocondriais. Além disso, esses estudos podem auxiliar técnicas de reprodução assistida em mulheres em idade mais avançada. Segundo dados da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA), a probabilidade de uma mulher saudável engravidar aos 30 anos é de 20% a cada mês. Já aos 40 anos essa probabilidade cai para 5%. Esta redução acentuada nas taxas de fertilidade associa-se principalmente ao envelhecimento ovariano e a danos gaméticos que diminuem a taxa de fertilidade e aumentam o risco de anomalias no feto.
De acordo com o Dr. Antonio Diez-Juan, especialista em biotecnologia para reprodução humana, as melhores alternativas para evitar a transmissão de doenças mitocondriais pode se dar durante o emprego de técnicas de fertilização in vitro. Nesses procedimentos, tanto o óvulo quanto o espermatozoide são coletados da mãe e do pai, respectivamente, e somente após a formação o embrião ele é implantado no útero da mãe. Durante esse processo, pode-se avaliar se as mitocôndrias da mãe portam quaisquer anormalidades e, a partir do uso de técnicas específicas de manipulação e fertilização in vitro, evitar que o feto herde tais doenças.
Os pesquisadores do LaGenBio da UFSCar acreditam que o desenvolvimento e avanço da pesquisa básica estão propiciando a melhor compreensão de mecanismos celulares de manutenção e reparo do DNA mitocondrial, e que a partir deste conhecimento, novas técnicas para o tratamento de doenças mitocondriais poderão surgir. No caso da proteína Rad51, uma vez comprovada sua participação no processo de restauração do DNAmt danificado, técnicas específicas poderão ser utilizadas para introduzir a Rad51 em óvulos com genoma mitocondrial defeituoso, principalmente em mulheres com idade mais avançada, em que a atividade dos genes de reparo do DNA é drasticamente reduzida.
Para produzir e isolar a Rad51, pode-se fazer uso de tecnologias de proteínas recombinantes, as quais já estão bem estabelecidas para alguns tipos proteicos, como, por exemplo, a insulina humana, que atualmente é produzida em microrganismos e utilizada com sucesso no tratamento de diabetes. Para Chiaratti, a partir de métodos similares a esse, será possível produzir proteínas específicas para o reparo de quebras no DNA e restauração da função mitocondrial de óvulos afetados, durante a fertilização in vitro, por meio da técnica de microinjeção, através da qual injeta-se a proteína de interesse, ou outro componente biológico, diretamente no óvulo.
Embora esses estudos estejam sendo realizados em um organismo-modelo (ou seja, cobaias), o grupo de cientistas do LaGenBio busca a possibilidade de resgatar a competência reduzida de gametas femininos envelhecidos, por meio da microinjeção da proteína Rad51 em óvulos inviáveis. Mutações no gene Rad51 já demonstraram subfertilidade feminina e mortalidade prematura de recém-nascidos em camundongos. No entanto, estudos específicos ainda precisam ser desenvolvidos para o estabelecimento da dose ideal da proteína e para avaliar a eficiência e segurança da técnica para que esta possa ser aplicada também em programas de fertilização in vitro em humanos.