Como se faz ciência brasileira de qualidade contra a Covid-19
É com prazer e orgulho que recebo a terceira colaboração externa para o blog nesta semana. No texto a seguir, assinado por Paula Signorini, Carlos Takeshi Hotta, Letícia Kawano-Dourado e Alexandre Biasi Cavalcanti, você pode conferir o primeiro e importante passo de uma iniciativa colaborativa feita para testar medicamentos contra a Covid-19 no Brasil. Boa leitura!
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Um esforço nacional contra a Covid-19
Em 26 de fevereiro, quando o vírus Sars-Cov2 foi confirmado no Brasil, já estava claro, pelos 71 mil casos confirmados no mundo, que a busca por um tratamento da COVID-19 seria necessária.
Em meados de março, com 200 mil casos no mundo e os primeiros óbitos no Brasil, pesquisadores chineses e franceses propuseram, com base em estudos em células isoladas, que a hidroxicloroquina poderia ser eficaz no tratamento dos doentes. Apesar das poucas evidências científicas, mas diante da falta de tratamentos eficazes, do baixo custo, do fácil acesso e de alguns estudos em seres humanos, a hidroxicloroquina passou a ser amplamente utilizada.
Paralelamente, uma iniciativa brasileira sem precedentes estava sendo formada com a missão de acelerar a produção de conhecimento sobre a doença: a Coalizão Brasil COVID-19. Buscando comprovações científicas sobre tratamentos potenciais, seu primeiro projeto testaria a eficácia e a segurança da hidroxicloroquina e da azitromicina em pacientes hospitalizados com quadro de leve a moderado de COVID-19.
O experimento se iniciou no dia 3 de abril, com uma rede de centenas de profissionais de saúde e 55 hospitais espalhados pelo país. Os pacientes foram sorteados em três grupos homogêneos, a fim de evitar grupos de pacientes com sintomas piores ou com maior frequência de comorbidades, por exemplo.
Um dos grupos receberia somente o tratamento padrão, que em geral incluía um antibiótico, um antiviral para o vírus da gripe, esteroides e um anticoagulante. A comparação com o grupo controle iria indicar os efeitos dos medicamentos que seriam prescritos para os dois grupos experimentais: o que recebeu hidroxicloroquina além do tratamento padrão, e o que recebeu hidroxicloroquina e azitromicina além do tratamento padrão. Nesse dia, o Brasil contabilizava 9 mil casos e 359 óbitos.
Para saber se os pacientes estavam melhores com os tratamentos, decidiu-se medir a gravidade da doença utilizando a escala sugerida pela OMS e pela ANVISA, que classifica os pacientes com COVID-19 em categorias que vão de paciente em casa e ativo a óbito. Secundariamente, também foi considerada a quantidade de dias livres de ventilação mecânica em 15 dias, que forneceria resultados ainda mais informativos.
Em apenas dois meses, chegou-se à avaliação do último paciente, no dia 2 de junho (555 mil casos e 31 mil óbitos). Apesar das dificuldades de se encontrar pacientes e médicos da linha de frente que aceitassem receber e/ou prescrever medicamentos determinados de acordo com os grupos do projeto, 667 pacientes colocaram o futuro de seu tratamento nas mãos da ciência. Nada disso teria sido possível sem eles.Por causa da pandemia, um ensaio clínico dessa magnitude, que geralmente é feito em ritmo de maratona, foi feito em ritmo de 100 metros rasos.
Após a análise estatística dos dados, os pesquisadores não observaram diferença no estado clínico dos pacientes dos três grupos de tratamento. Mais importante, não detectaram diferença no número de dias livres de ventilação mecânica em 15 dias. O que observaram foi uma proporção maior de pacientes com alterações cardíacas e com danos no fígado nos grupos que foram tratados com hidroxicloroquina.
A alta qualidade dessa pesquisa possibilitou que os pesquisadores tivessem seus resultados aceitos pela New England Journal of Medicine, uma das mais prestigiosas e rigorosas revistas científicas do mundo, no dia 23 de julho.
O Coalizão I é o primeiro de nove ensaios clínicos a serem conduzidos pela Coalizão Brasil COVID-19, mostrando o potencial brasileiro de produzir ciência colaborativa com grandes resultados. É um exemplo de como a ciência brasileira tem muito a contribuir na luta contra essa pandemia.
Paula Signorini
Bióloga, produtora de conteúdo e editora
Carlos Takeshi Hotta
Professor associado do Instituto de Química da USP
Letícia Kawano-Dourado
HCor e membro da Coalizão Brasil COVID-19
Alexandre Biasi Cavalcanti
HCor e membro da Coalizão Brasil COVID-19