A história do racismo nos EUA deturpada pela Gazeta do Povo
Acho ótimo que tenhamos grandes jornais brasileiros com preferências políticas declaradas. Pluralismo e busca de objetividade são valores importantes, mas também me parece haver espaço para a imprensa que deixa absolutamente claro o seu viés político e não ludibria ninguém – caso o leitor não goste, basta ler outra coisa. Mas ninguém pode escolher os próprios fatos: esses deveriam ser mostrados com o mínimo de distorções possíveis. Infelizmente, um texto da Gazeta do Povo sobre a história dos EUA não se contentou em distorcer os fatos: praticamente enforcou e esquartejou os coitados e enviou um pedaço para cada canto da Terra.
Colocando as coisas em contexto: para quem não conhece, a Gazeta do Povo, tradicional órgão da imprensa paranaense, é um dos poucos jornais brasileiros abertamente conservadores. Parabéns a eles pela transparência. Não sou assinante, mas me cadastrei no site da Gazeta e recebo periodicamente uma newsletter que funciona como incentivo para uma futura assinatura. A newsletter de hoje funcionou, entretanto, como tremendo desincentivo.
O mote do pequeno texto enviado por e-mail é o seguinte: “Democratas e progressistas americanos têm um passado racista do qual tentam se livrar a qualquer custo”. Os parágrafos que se seguem fazem um resumo – em geral, entre o impreciso e o completamente errado – da história dos EUA entre a Guerra Civil do século 19 e a segregação racial de meados do século 20, com uma menção final aos atuais protestos do Black Lives Matter. Abaixo, ponto por ponto, os principais absurdos do texto e a explicação de seus erros.
“O presidente que precisou declarar guerra aos estados do Sul para libertar os escravos era o republicano Abraham Lincoln – os democratas ficaram ao lado dos escravagistas.”
Errado. Quem escreveu essa barbaridade não sabe nada sobre a dinâmica da política americana nos anos 1850 (a década anterior à Guerra de Secessão nos EUA) ou, pior, quer falseá-la. Embora às vezes seja classificado como abolicionista no Brasil, Lincoln NUNCA FOI ABOLICIONISTA. A ideia de libertar imediatamente todos os escravos defendida pelos abolicionistas americanos era considerada um plano de radicais e extremistas. Só uma parte pequena do Partido Republicano, e do Congresso americano como um todo, era formada por abolicionistas de carteirinha.
O que Lincoln defendia no começo era a CONTENÇÃO da expansão escravagista para que, a médio e longo prazo, a instituição acabasse morrendo. Por isso, opôs-se a leis que permitissem o trabalho escravo em novos estados americanos criados pela guerra contra o México e pela expansão rumo a territórios indígenas no oeste. Mas, antes que a Guerra Civil começasse, nunca propôs extinguir com uma canetada a “instituição peculiar” (como dizem os americanos) nos estados do Sul, o coração dos EUA escravistas.
O problema é que, para os políticos escravagistas, as restrições mais modestas de Lincoln ao seu sistema econômico já pareciam motivo suficiente para declarar sua independência em relação ao resto do país, o que fizeram, começando pela Carolina do Sul. Não contentes com isso, atacaram forças do governo federal no Forte Sumter (também na Carolina do Sul). . Só então Lincoln declarou guerra – cujo objetivo era RESTAURAR A UNIÃO, não “libertar os escravos”.
Diante da resistência do Sul e da pressão da opinião pública do Norte, Lincoln iniciou uma série de medidas para solapar a escravidão no território inimigo, as quais culminaram com a Proclamação da Emancipação em janeiro de 1863 – que libertou os escravos DO SUL. Sim, porque os escravos dos estados fronteiriços, que ficaram do lado da União e de Lincoln e não se rebelaram, só passaram por um processo de abolição interno, sem que o governo federal os forçasse diretamente a isso.
A propósito, Lincoln demorou para compreender que seria possível aceitar uma população de cidadãos negros nos EUA. Seu plano original era incentivar os escravos libertos a EMIGRAREM PARA A ÁFRICA, deixando o território americano para os brancos.
A seguinte frase de Lincoln, de 1862, é muito instrutiva: “Meu principal objetivo nesta luta é salvar a União, e não é nem salvar nem destruir a escravidão. Se eu pudesse salvar a União sem libertar qualquer escravo, é o que faria, e se pudesse salvá-la libertando todos os escravos, é o que faria; e se pudesse salvá-la libertando alguns e deixando de lado outros, também faria isso. O que faço quanto à escravidão e quanto à raça de cor, faço-o porque creio que isso ajuda a salvar a União”.
Mais uma passagem duvidosa:
“O posicionamento durante a guerra civil deu vantagem eleitoral aos republicanos. Como reação, os democratas do Sul dos EUA tentaram suprimir os direitos eleitorais dos negros, para garantir o poder a seus candidatos.”
Mais ou menos, bem mais ou menos. Depois do fim da Guerra Civil, durante a chamada Reconstrução, na década de 1870, quando os republicanos mais radicais tentaram reorganizar a sociedade do Sul em moldes mais igualitários (e acabaram desistindo, porque estava dando muito trabalho e atrapalhando o equilíbrio político nacional), o Congresso deixou os antigos rebeldes brancos temporariamente sem direitos políticos em certos estados.
Isso até permitiu, em alguns casos, a ascensão passageira de legislaturas estaduais com maioria de deputados negros. No entanto, o eleitorado branco de todo o país, e não apenas do Sul, via com desconfiança a igualdade política com os negros. Os brancos do Norte, em sua maioria, apoiaram Lincoln quando era o caso de derrotar a rebelião do Sul, mas não necessariamente para confirmar o “voto negro”. No fim dos anos 1870, a Reconstrução foi transformada em “Redenção” – termo usado pela elite branca do Sul para designar seu retorno ao poder, após um grande acordo nacional com os políticos de Washington.
“Outra bandeira que até hoje é ardentemente defendida pelos progressistas e democratas, o aborto, foi defendida por motivos eugenistas no começo do século XX. A criadora da entidade abortista Planned Parenthood (PP), Margaret Sanger, não acreditava que os negros fossem tão inteligentes como os brancos e não escondia sua intenção macabra de diminuir a população negra dos Estados Unidos.”
Infelizmente, no final do século 19 e começo do século 20 nos EUA – e na Europa, e inclusive no Brasil – eugenia e defesa da diminuição da população negra não era privilégio de “abortista”, “progressista” e “democrata” não, dona Gazeta do Povo. O desejo de Lincoln de “exportar” para a África todos os negros americanos, o fetiche das elites do Império e da República brasileiros pelo “branqueamento” da população, a ideia de esterilizar pessoas com supostas deficiências físicas e mentais – tudo isso era praticamente senso comum para políticos e intelectuais dessa época, independentemente de suas preferências políticas específicas. Até gigantes como Winston Churchill, provavelmente o político conservador com impacto mais positivo no século 20, acabavam repetindo as velhas patacoadas sobre a inferioridades das raças não brancas.
Além dessas bobagens pontuais, o texto inteirinho é perpassado por expressões como “segregação imposta por progressistas”, “verdadeira história do passado racista dos EUA, ligado intimamente a democratas e progressistas”. A equação aqui é “democratas do século 19 e começo do século 20” = “democratas de hoje” = progressistas do mundo todo.
A questão é que essa equação é 1)ignorante ou 2)desonesta. O Partido Democrata, com esse nome, existe desde os anos 1830. Já o Partido Republicano foi criado nos anos 1850. Eles se mantiveram coesos em programa e ideologia desde então?
Não, é claro que não. É até engraçado a Gazeta tentar colar o rótulo de “progressistas” nos democratas da Guerra da Secessão porque, naquela época, eles seguiam exatamente o figurino dos conservadores brasileiros de hoje. Queriam menos impostos, menos intervenção governamental, mais “valores tradicionais”. O fundador do partido foi Andrew Jackson, um dos maiores responsáveis pelo genocídio indígena americano. (Não que eu esteja querendo dizer alguma coisa com isso, imaginem.) Deviam até berrar “mais EUA, menos Washington”, não duvido.
Já os republicanos dos anos 1850 e 1860 têm muito mais traços em comum com vários dos progressistas atuais. Além da defenderem o controle da escravidão – e, nos casos mais radicais, o fim da instituição –, debatiam a sério o voto e a participação política das mulheres e promoveram o intervencionismo do governo federal, inclusive na economia. De início, eram, inclusive, contra o imperialismo americano – Lincoln se opôs à anexação de boa parte do território mexicano pelos EUA quando era congressista.
Os atuais – veja bem, os ATUAIS – progressismo dos democratas e conservadorismo dos republicanos são fenômenos históricos relativamente recentes. Começaram com a adesão de alguns democratas do Sul dos EUA ao “populismo” tradicional, que combinava a valorização do homem comum com medidas para aliviar a pobreza rural americana – ou melhor, a pobreza rural BRANCA americana; os negros continuavam de fora da brincadeira.
Isso se aprofundou com as reformas econômicas do presidente Franklin Delano Roosevelt durante a Grande Depressão e culminou com a adesão dos democratas do Norte à luta pelos direitos civis dos negros nos anos 1960 – o que acabou alienando políticos e eleitores da velha guarda democrata do Sul.
Quem estava de olho nesse pessoal decepcionado? Os republicanos, é claro, que abraçaram o conservadorismo como estratégia para garantir o controle do Sul nos anos 1970. Aliás, com um bocado de sucesso até hoje. Antes desse rolo todo, nos anos 1950, havia pouquíssima diferença ideológica “essencial” entre democratas e republicanos. Quem diz que a polarização entre os dois partidos remonta aos séculos dos séculos vai acabar desinformando o leitor, e desinformando feio.
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