A descida de Odin ao Inferno nórdico, recontada em versos

A UFPB (Universidade Federal da Paraíba) abriga um grupo de estudos muito ativo sobre a antiga Escandinávia e a cultura dos chamados vikings. Uma das pesquisadoras do grupo, a doutoranda Susan Sanae Tsugami, fez a grande gentileza de me convidar para colaborar com ela num artigo sobre um poema curiosíssimo do século 18. Nele, o autor britânico Thomas Gray reimagina a jornada de Odin, o chefão dos deuses nórdicos, rumo a Hel, o lar dos mortos sem honra. A Susan me convidou para traduzir o poema (que pra mim soou bastante similar aos dos nossos árcades de Minas, na verdade) para o português. Abaixo, convido o gentil leitor a ler o resultado. E aqui está o artigo completo com a arguta análise da Susan sobre como o poema setecentista recriou a mitologia escandinava. Está na revista especializada Scandia.

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A Descida de Odin. Uma Ode

(Da língua nórdica), in Bartholinus, de causis contemnendae mortis; Hafniae, 1689, Quarto.

Upreis Odinn allda gautr, etc.

1 Ergueu-se o Rei dos Homens em tropel
2 E a sela pôs em seu negro corcel;
3 Desceu larga ravina em cavalgada
4 Buscando de Hela fera a vil morada.
5 Lançou-lhe o cão das trevas espiadela,
6 Diante dele abriu pilosa goela,
7 Carniça transbordando na queixada,
8 Com saliva e imundície destilada:
9 Rouco latido faz horrendo alarde,
10 Presas que escarnecem, olhar que arde;
11 Persegue longamente a gritaria
12 Ao pai da potente feitiçaria.
13 Segue ele avante ainda pela via
14 (Debaixo dele a terra que gemia)
15 Até que enfim seus olhos sem temor
16 Veem do inferno as nove portas de horror.

17 Bem defronte ao oriental portão,
18 Sentou-se junto ao musgo ali no chão,
19 Lá onde há muito estão os restos dela,
20 O pó que foi profética donzela.
21 Voltado para a direção do norte,
22 Três vezes traçou ele a runa forte;
23 Três vezes pronunciou, em tom atroz,
24 O verso que aos defuntos cede voz;
25 Até que ouviu-se vir do solo oco
26 Um hálito mortal e som mui rouco.

27 Pr[ofetisa]. Que voz ignota e bruxa tem por cúmulo
28 Assim romper a paz deste meu túmulo?
29 Quem ousa afligir este pobre espectro
30 E me arranca de onde a noite tem cetro?
31 Há muito que estes ossos podres vão,
32 Roem-nos a neve e o calor do verão,
33 O copioso orvalho, a chuva, a lama!
34 Deixai, deixai enfim que eu volte à cama.
35 Quem é esse que, com profano peito,
36 Convoca-me a deixar repouso e leito?

37 O[din]. Um viandante, a ti desconhecido,
38 É quem chama, de um guerreiro nascido.
39 Ora os feitos da luz conhecerás;
40 Dize então o que lá embaixo se faz,
41 De quem é aquela mesa fulgurante,
42 Serve a quem a cama d’ouro brilhante?

43 Pr. Vê, pois, do rico cálice a guarida,
44 A taça que d’abelha traz bebida,
45 Sobre ela pende dourado broquel;
46 Eis, pois, d’ousado Balder o hidromel:
47 De Balder morte fera já fez seu.
48 A dor alcança até os filhos do Céu!
49 De mau grado faço a boca descerrar:
50 Deixa, deixa que eu volte a repousar.

51 O. Ouve outra vez meu grito sem demora.
52 Profetisa, levanta e dize agora
53 Que perigo ao filho de Odin segue,
54 A quem a sua sina está entregue.

55 Pr. Nas mãos de Hoder vai o fim do herói:
56 O irmão o manda à tumba que corrói.
57 Ora os lábios cansados vou fechar:
58 Deixa, deixa que eu volte a repousar.

59 O. Profetisa, obedece ao meu feitiço,
60 Levanta outra vez o peito enfermiço
61 E diz quem vingará tal transgressão,
62 Lançando o sangue de Hoder ao chão.

63 Pr. Nas cavernas que se abrem no oeste,
64 Após gozar de Odin o abraço agreste,
65 Rinda há de parir um magno varão:
66 Pente não tocará seus fios de carvão,
67 Não lavará as fauces na torrente,
68 Nem verá sol partindo no Ocidente:
69 Até que Hoder morto tenha em mira
70 Ardendo enfim na funerária pira.
71 Ora os lábios cansados vou fechar:
72 Deixa, deixa que eu volte a repousar.

73 O. À minha voz mais um pouco obedece.
74 Vai, dize, profetisa que não esquece,
75 Quem são as virgens cuja dor molesta
76 Faz com que inclinem rumo ao chão a testa,
77 Que vão suas tranças louras destroçar,
78 E os níveos véus, que flutuam no ar?
79 Dize quem lhes causou tal mal-estar:
80 E então deixar-te-ei a repousar.

81 Pr. Ah! Sei enfim que não és viandante,
82 ó Rei dos Homens, pai do Trovejante,
83 De magna linhagem e magna sina –

84 O. E tu não és moça d’arte divina
85 E de bom nunca profetizas nada;
86 Mas és a mãe da gigante ninhada!

87 Pr. Vai-te, não quero ouvir vanglórias tais,
88 Cá suplicantes não virão jamais
89 Romper do meu sono de ferro a peia,
90 ‘Té que Lok quebre a eterna cadeia;
91 Jamais, até que a Noite elemental
92 Retome o seu antigo cabedal;
93 Até que, em chama e ruína disperso,
94 Afunde-se o tecido do Universo.

Anotações de Gray

2 [corcel] Sleipner era o Cavalo de Odin, que tinha oito patas. [Nota em C(ommonplace) B(ook).]

4
[Hela, forma latinizada do n[órdico] a[ntigo] Hel]
Niflheimr, o inferno das nações góticas, consistia em nove mundos, aos quais eram entregues todos aqueles que morriam de doença, velhice ou por quaisquer outros meios que não em batalha: ele era presidido por Hela, a Deusa da Morte.
Hela é descrita como apresentando um semblante horrendo, & seu corpo tendo metade cor de carne & metade esbranquiçado. [Nota em C(ommonplace) B(ook).]

24
A palavra original é Vallgaldr; de Valr, “mortuus”, & Galdr “incantatio”. [Nota em C(ommonplace) B(ook).]

90
Lok é o Ser maligno que continua acorrentado até que o Crepúsculo dos Deuses se aproxime, quando ele há de quebrar suas cadeias; a raça humana, as estrelas e o sol hão de desaparecer; a terra afundará no mar, e o fogo consumirá os céus; até o próprio o Odin e as deidades de sua raça hão de perecer. Para uma explanação mais completa dessa mitologia, ver Introdução à História da Dinamarca, de Mallet, 1755, Quarto. [(Um esboço ligeiramente mais detalhado dessa nota está em C[ommonplace] B[ook].)]

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