Perspectivas sobre a pandemia e os 200 mil mortos no Brasil

Escrevi recentemente uma reportagem sobre a triste marca das 200 mil mortes causadas pela Covid-19 no Brasil e, embora o texto tenha ficado longo, muita coisa ficou de fora. Aproveito para publicar aqui ao menos parte do material da minha apuração que não pude usar. E começo com os comentários bem pensados de Renato Pereira de Souza, pesquisador do Instituto Adolfo Lutz em Taubaté (SP). Confira — vale a leitura, na minha modesta opinião.

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“Primeiramente, acho que nunca descrevemos epidemiologicamente de forma correta a pandemia no Brasil. O impacto real ainda não foi claramente mostrado.

Não conseguimos a princípio ter uma testagem ampla, de forma que ocorreu uma enorme subnotificação.

Isso prejudicou a percepção real do avanço da doença, e seu real impacto na população. Agravado pelo descaso de algumas autoridades políticas criou-se um cenário perfeito para o negacionismo e baixa adesão às medidas protetivas.

Na verdade, nunca conseguimos resolver o problema da subnotificação, mas bola para a frente, os casos aumentaram em número e se expandiram para novas áreas, e pelo menos após um mês de circulação o cenário, embora incompleto, pelo menos começava a delinear o padrão esperado.

Isto é, mais ou menos. Outra coisa que me chama muito a atenção é como a letalidade da doença era maior no início.

Isso é normal de ocorrer ao longo de um surto de qualquer doença nova. Afinal se espera que as equipes médicas sejam pegas despreparadas mas se organizem e apliquem novos protocolos mais eficientes, aumentando a frequência de desfechos favoráveis. Isso também ocorreu, mas grande parte da maior letalidade se deve ao fato de não termos sido capazes de definir corretamente o denominador “número de casos”, devido ao grande número de infecções assintomáticas e casos não notificados.

Essa capacidade de transmissão via os assintomáticos é uma questão relativamente pouco abordada, ainda mais considerando o papel tão importante que desempenha. Embora isso tenha sido falado na mídia, acho que a população em geral não captou essa informação e nunca entendeu a gravidade da situação.

A chegada de novas variantes é algo esperado. Sou virologista especializado em vírus zoonóticos [transmitidos de animais para pessoas] e meu doutorado foi na área da epidemiologia molecular. Vejo isso com preocupação. Acho muito pouco provável que sejam efetivamente selecionadas variantes resistentes à vacina, mesmo porque a resposta imune costuma estar associada a regiões altamente conservadas [sem alterações] do genoma viral, associadas ao processo de entrada do vírus na célula. No entanto, é muito provável o surgimento de variantes com diferentes graus de transmissibilidade, o que já estamos observando, ou variantes mais ou menos virulentas, o que aparentemente ainda não ocorreu.

Entendendo que tanto transmissão quanto virulência são características que dependem também do hospedeiro e de sua resposta à infecção, a percepção dessas alterações e de seu impacto é por vezes difícil e talvez só venha em alguns meses.

Do ponto de vista geográfico, o que acho que está sendo muito pouco considerado é a importância do processo de difusão do vírus entre as cidades e como isso permite a manutenção da epidemia.

As ações de controle infelizmente são pulverizadas, com cada município realizando a sua parte. No entanto, o vírus não conhece o conceito de fronteiras. A conectividade entre as cidades é um fator muito importante e tem sido bastante ignorado.

Faço parte do comitê científico aqui do vale do Paraíba, e temos realizado alguns estudos apontando justamente como a circulação do vírus nas cidades maiores e de maior circulação influencia o que ocorre nas cidades menores. Cidades como São José dos Campos, Taubaté e o Litoral Norte têm um impacto enorme nas cidades ao redor, o que sugere a necessidade de uma resposta conjunta e sinérgica… mas está difícil. Nem ao Plano São Paulo estão aderindo.

Por fim, temos discutido muito aqui na nossa região que não vivemos uma segunda onda, estamos antes ainda na primeira onda da doença, que recebeu um ‘boost’ [impulso] devido a baixa adesão às medidas protetivas, flexibilização da economia feita de forma irresponsável e aumento do contato devido à diminuição do distanciamento social.

É nítido que a entrada do estado de São Paulo na fase verde do Plano facilitou esse processo e teve um impacto negativo. Isso permitiu a retomada da transmissão e a reversão da curva, que estava caindo, chegando a patamares muito próximos aos observados no início da pandemia, na fase de ascensão de casos… aí vieram as festas de fim de ano e agora vamos ainda ver o impacto disso tudo.

Minha opinião é que estamos atravessando um momento ainda mais grave, pois a adesão da população está menor, a economia está traumatizada e me parece um momento político pouco propício para alguém tomar a frente e fazer o que, em minha opinião seria o correto, que é declarar um lockdown por algumas semanas, pelo menos umas duas ou três, para desacelerar a transmissão. Não creio que nossos governantes tenham coragem de assumir o ônus decorrente dessa medida, mas sinceramente acho que a consequência de não o fazer é ainda maior… mas estão todos pagando para ver.

Tenho trabalhado bastante durante a pandemia. Meu laboratório não foi credenciado para realizar o diagnóstico por uma questão dos equipamentos que utilizamos não serem adequados para o protocolo aplicado, mas em compensação tenho dado suporte à vigilância regional com a construção de modelos epidemiológicos e descrevendo os padrões. E temos um comitê científico bem atuante.”

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