Covid-19 permite observar a evolução acontecendo ao vivo
Começamos o mês com mais uma participação especial aqui no blog. Desta vez, o autor do post convidado é o professor Milton Groppo, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Biologia Comparada no Departamento de Biologia da USP de Ribeirão Preto. Ele explica como o surgimento da Covid-19 abre uma janela para a compreensão do processo evolutivo em tempo real. Para saber mais, é só ler o texto dele abaixo.
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A pandemia de Covid-19 causada pelo Sars-CoV-2 (nome técnico de um tipo de coronavírus) tem se arrastado faz mais de uma ano. As mortes e UTIs lotadas, a discussão sobre medidas restritivas, procedimentos sanitários, que máscara é a melhor, qual vacina é a mais indicada, aglomeração ou não e tudo relacionado à Covid tem dominado os noticiários em todas as mídias no mundo todo.
Como a Covid-19 é um assunto literalmente de vida ou morte, é natural que isso acontecesse. Mas, despercebida por grande parte do grande público, está se desenrolando uma outra história, uma história que muita gente nega e não entende: a evolução biológica, sendo transmitida exatamente agora, ao vivo, em qualquer canal de TV que a gente ligue.
A evolução biológica nada mais é que o processo de transformações que os organismos sofrem ou apresentam ao longo do tempo no nosso planeta. A existência de fósseis de plantas, animais e até de micro-organismos, seres que não existem mais, é um modo bom para mostrar como o conjunto de organismos se modificou ao longo de milhões de anos na Terra. A existência clara de espécies mais semelhantes entre si do que outras, tanto na sua forma quanto no seu desenvolvimento, apontava para uma história de mudanças que essas espécies sofreram vindas de um ancestral comum.
Entretanto, apenas nos últimos cerca de 150 anos começaram a ser apresentadas hipóteses baseadas em dados científicos que apresentassem mecanismos que explicassem a mudança das espécies ao longo do tempo – como a seleção natural de Darwin e Wallace ou a ideia de mutação neutra. De qualquer forma, hoje em dia sabe-se que a evolução só é possível se houver variação nos organismos, variação essa que é causada por mutações no material genético (DNA ou RNA). Como as mudanças nos organismos são mais lentas do que o olhar humano pode captar, sendo processos que envolvem milhares ou milhões de anos para se perceber, é difícil ver a evolução atuando.
Isso é um ponto que favorece os negacionistas da evolução biológica. Entretanto, se observarmos com mais cuidado o que está acontecendo agora com a pandemia da Covid-19 e o seu agente causador, veremos que temos todos os elementos para mostrar que a evolução biológica é um fato e está acontecendo agora.
O Sars-CoV-2
Ele é um parente muito próximo de outro vírus, o Sars-CoV ou Sars-CoV-1, que ocasionou um surto de infectados em seres humanos poucos anos atrás (entre 2002 e 2004). A sigla Sars designa, em inglês, o agente causador da “Síndrome Respiratória Aguda Grave”. São ambos parte de uma “família” de vírus de RNA que causam infecções em diversos organismos, como aves e morcegos.
O Sars-CoV e o Sars-CoV-2 são semelhantes e compartilham cerca de 80% do seu material genético (mais detalhes aqui). Além disso, cerca de 96% do código genético do Sars-CoV-2 é igual ao de outros coronavírus que infectam morcegos. Acredita-se que esses animais possam ter transmitido tais vírus para um outro animal intermediário e depois para as pessoas, ou que a transmissão tenha sido direta.
Como todo vírus, eles são entidades simples, formadas por uma molécula de DNA ou de RNA (no caso dos retrovírus, como os vírus da gripe ou nos Sars-CoV) , muitas vezes protegidos por um envelope formado por proteínas e gorduras. No caso dos Sars-CoV, essa capa tem numerosos espinhos (“spikes” em inglês), que auxiliam os vírus a se fixar nas células que vão infectar – como se fossem carrapichos que grudam nas nossas roupas. Esses espinhos estão presentes em toda a família dos coronavírus.
Os vírus são incapazes de se reproduzir sem penetrar (= infectar) nas células de outro organismo, pois precisam da maquinaria da célula infectada para produzir novas cópias de si mesmos. Por isso até há uma discussão se eles seriam seres vivos ou não. Outra característica dos vírus (incluindo os Sars-CoV) é a sua especificidade, o que significa que um vírus patogênico (isto é, causador de doenças) para plantas não o será necessariamente para humanos. É por isso que existem vírus de gripe canina que não causam gripe em seres humanos e vice-versa, por exemplo.
Mas onde entra a evolução nessa história?
Quando a Covid-19 surgiu e se espalhou, além dos termos isolamento social, máscaras, tratamentos… citados no começo deste texto, foram aparecendo ao longo dos meses outras palavras, como “linhagens” ou “variantes” – variantes do Reino Unido, da África do Sul, do Brasil (com a variante P1 detectada primeiro em Manaus), agora uma possível nova variante na Índia, que conteria uma “dupla mutação”. Mas o que são essas tais de variantes? Como surgiram? Elas sempre existiram? E mutação? E o que a evolução tem a ver com tudo isso?
Nós podemos ter dúvidas de que os chimpanzés e gorilas, apesar de todas as semelhanças compartilhadas com a espécie humana, são nossos parentes e compartilham uma história evolutiva recente comum. Nós não testemunhamos os eventos de diferenciação das linhagens desses organismos, pois isso aconteceu há muitos milhões de anos. Além disso, a diferenciação das linhagens ocorreu de forma lenta e, com os olhos humanos, nós não as perceberíamos, mesmo que entrássemos em uma máquina do tempo.
Outro fato que poderia depor contra a ideia de chimpanzés, gorilas e os humanos terem um ancestral comum recente é que são nítidas as diferenças entre essas espécies atualmente e se não tivéssemos fósseis intermediários (os quais temos hoje em dia) poderíamos achar que tais espécies não foram geradas por transformações gradativas, mas que teriam sido criadas do jeito que são hoje.
Mudança em tempo real
No caso do vírus causador da Covid-19, nós temos visto as mudanças ocorrerem rapidamente, com a formação de novas linhagens em intervalos muito curtos, de meses. Há pouquíssimos anos não tínhamos notícia dos Sars-CoV, pois os coronavírus eram encontrados em outros organismos não humanos, como aves e morcegos. O fato de esses vírus terem adquirido a capacidade de infectar os humanos recentemente está ligado a variações que ocorrem nas populações desses vírus.
Assim como nós humanos, cada vírus é um indivíduo, e eles possuem diferenças genéticas. Essas diferenças genéticas, ou variações, são causadas por mutações no DNA ou RNA. As mutações são a origem da variabilidade nas diferentes espécies e, se fixadas (ou selecionadas), podem levar a mudanças nas populações ao longo do tempo– isto é, podem propiciar a evolução. Entretanto, ao contrário dos organismos “grandes”, os vírus têm uma ciclo de vida muito rápido, às vezes de algumas horas, e geram um número estratosférico de cópias de si mesmos em um curtíssimo espaço de tempo.
As mutações ocorrem em todos os organismos e são a base da variação que eles apresentam. Mas as mutações não são todas ruins ou todas boas: a maioria é neutra e não leva a efeitos imediatos em uma população. Além disso, organismos com o ciclo de vida mais longo (como um ser humano, um elefante, ou uma sequoia, que vive centenas ou até milhares de anos) possuem menor probabilidade de ocorrência de mutações por intervalo de tempo, pois as mutações que interessam no estudo da evolução são aquelas que são passadas para outras gerações.
E é aí que está o pulo-do-gato no caso dos vírus: como eles se multiplicam rapidamente, existe uma chance muito maior de acontecerem mutações por intervalo de tempo que podem ser passadas para outras gerações. E, se acontecem mais mutações, há uma chance maior de ocorrer uma mutação que possibilite àquela cepa (ou linhagem) infectar outros organismos além daqueles que aquele tipo de vírus já infectava.
Foi o que provavelmente aconteceu na China ou em outro local, no começo de tudo: em uma determinado lugar, por acaso havia uma linhagem de coronavírus que infectava outro organismo (provavelmente um morcego) que continha uma mutação que propiciou a essa linhagem específica infectar humanos, sendo então denominadas Sars-CoV. Os vírus causadores da Covid-19 não “pensaram” que seria melhor infectar humanos; foi um evento ao acaso, facilitado, entretanto, pelo contato entre humanos e outros animais (através da criação e/ou do consumo)
Vemos então que mutações que causaram variações nos Sars-CoV propiciaram a infecção muito recente destes vírus em humanos, eventos que não eram registrados antes dos anos 2000. Isso por si só já mostra como a evolução está ocorrendo. Mas a história não para aí. Depois do Sars-CoV-2 infectar humanos e causar a Covid-19, outras mutações ligadas a esse vírus em regiões geográficas específicas foram detectadas ao longo de 2020: no Reino Unido, na África do Sul, no Brasil, como a famigerada P1, tudo isso em menos de um ano.
Essas cepas ou linhagens que apresentam novas mutações possuem diferenças na configuração de proteínas nas projeções em forma de espinho que ocorrem na camada de proteção externa. Com a mudança da conformação desses espinhos, o reconhecimento do sistema imunológico do organismo infectado é prejudicado ou mesmo impossibilitado e a reação do sistema imunológico não é rápida o suficiente. Como as vacinas trabalham ou com cepas de vírus atenuados ou com reconhecimento de RNA, qualquer mutação que ocasione mudanças nos espinhos ou outras porções da camada de proteção dos vírus são encaradas com muita preocupação, pois podem tornar as vacinas ineficazes.
Seleção natural
As novas variantes coexistem com as linhagens que não sofreram as mutações que modificam a conformação dos espinhos da capa protetora. Essas variantes competem entre si por hospedeiros, em um processo de seleção natural (alguém lembrou de Darwin?) onde a variante mais adaptada a uma determinada condição pode aumentar a sua representatividade em uma população viral.
E, quanto mais tempo a pandemia perdurar, maior a chance de acontecimento e fixação de mutações do Sars-CoV-2 ligadas a mudanças de patogenia e virulência, como a P1 de Manaus citada acima, que talvez seja mais contagiosa e mais perigosa para pessoas mais jovens e sem comorbidades. Em outras palavras, quanto mais o tempo passa, mais chances para que ocorram mais variações – isto é, novas mutações que podem ser fixadas nas populações de vírus e maior probabilidade de formação de novas variantes. Ou seja, mais chances de ocorrer… evolução!
O surgimento da Sars-Cov-2 e novas variantes chamam a atenção por terem efeito direto na saúde humana por conta da Covid-19, o que é compreensível, pois se trata da vida ou morte de pessoas. Mas os mecanismos de mutação e fixação dessas mutações nas diferentes variantes dos vírus, a capacidade das novas variantes de infectar outros organismos mostrando novas adaptações e o fenômeno da competição entre as diferentes variantes não são diferentes daquelas mudanças e adaptações que pudemos observar de maneira indireta em todos os organismos que ocorrem na Terra ao longo de milhões de anos.
É evolução biológica acontecendo em tempo real, ao alcance de um celular ou controle remoto. Para além da questão médica urgente, é uma excelente oportunidade de se mostrar que a evolução biológica é uma fato e que esse fato não pode ser mais ignorado por grupos negacionistas da ciência. Mesmo que dolorosa, é uma chance, mais uma vez, de aprendizado.