Desculpaí, mas Jesus existiu: fontes cristãs

Reinaldo José Lopes
O mais antigo fragmento do Novo Testamento é este trecho do Evangelho de João em papiro. Nesse pedaço do texto está o famoso diálogo de Jesus com Pilatos, no qual o romano pergunta "O que é a verdade?" (Crédito: Reprodução)
O mais antigo fragmento do Novo Testamento é este trecho do Evangelho de João em papiro. Nesse pedaço do texto está o famoso diálogo de Jesus com Pilatos, no qual o romano pergunta “O que é a verdade?” (Crédito: Reprodução)

Aviso: este é o penúltimo post de uma série sobre a historicidade de Jesus. Para ler os textos anteriores, por favor clique nos links abaixo.

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Chegou a hora de enfrentarmos as fontes antigas que trazem mais informações, mas também mais dúvidas, sobre Jesus: os documentos cristãos do século 1º d.C., obviamente. “Mas peraí”, alguém poderia objetar com toda a justiça, “isso não é roubalheira? Afinal, se a fonte é cristã, obviamente o autor achava que Jesus existiu, certo?”

Claro — quer dizer, não tão claro; há algumas hipóteses doidas que tentam mostrar que, para o apóstolo Paulo, por exemplo, Jesus foi apenas um ser divino, e não alguém de carne e osso que morreu na cruz. Mas o que a metodologia de análise histórica faz é tentar superar esse viés analisando detalhadamente as fontes cristãs e vendo se a maneira como elas concordam — e também divergem! — a respeito da figura de Jesus bate com o padrão encontrado em outras fontes históricas sobre figuras mais neutras.

Lembre-se do sentido técnico preciso de “fonte histórica independente” que eu expliquei no post anterior. Posso me autocitar? Vejam o que eu disse: fonte independente é “a fonte que não pode ser remontada a outra do ponto de vista literário, ou seja, a fonte que não copiou simplesmente suas informações de outro texto, mas se baseia numa tradição — muitas vezes oral — independente. Isso pode ser inferido a partir de diferenças significativas de vocabulário, ideologia e estrutura narrativa, entre outras coisas”.

Fonte independente, portanto, não é fonte “isenta” — até porque, gente linda, isso não existe. Todos os historiadores e escritores antigos (e modernos!) possuem vieses ideológicos e políticos, ainda que muitos tentem se esforçar ao máximo para produzir narrativas que levem em conta todos os fatos e não pendam injustamente para um lado ou para o outro.

MAS AS FONTES CRISTÃS NÃO SÃO SUPERTARDIAS?

De novo, são e não são. Devo lembrar aqui que relatos de testemunhas oculares a respeito da imensa maioria dos eventos da Antiguidade são bastante raros. OK, Tucídides escreveu sobre a Guerra do Peloponeso, na qual lutou, e o próprio Júlio César escreveu sobre seu papel na conquista da Gália e nas guerras civis romanas (taí um excelente exemplo de fonte tecnicamente independente, mas nem um pouco isenta). Por outro lado, o “pai da história”, Heródoto, fez o mais antigo relato sobre as guerras entre gregos e persas escrevendo cerca de meio século depois do fim da contenda, e os principais autores que escreveram sobre os primeiros imperadores romanos — gente como Suetônio e Tácito — estavam separados por ainda mais décadas de seus principais personagens.

O consenso entre os historiadores atuais é que os livros do Novo Testamento provavelmente incorporam material transmitido oralmente por testemunhas oculares, mas estão longe de terem sido escritos por tais testemunhas. São, apesar disso, quase universalmente considerados textos do século 1º d.C., escritos entre 40 anos e 70 anos depois da morte de Jesus, o que é uma distância temporal decente, embora longe do ideal, no contexto da historiografia produzida na Antiguidade clássica. De novo, é comparável a Heródoto (que, aliás, também curtia falar de ocorrências milagrosas em seus relatos).

Breve parêntese: uma pessoa me “chamou na chincha”, como a gente diz aqui em São Carlos, dizendo que todos os textos do Novo Testamento são do século 2º d.C. Descobri que um ou outro especialista defende isso, mas a visão esmagadoramente mais aceita é a que expus acima. Uma datação muito tardia dos Evangelhos, e dessa parte da Bíblia como um todo, não faz muito sentido por uma série de razões. A primeira tem a ver com os próprios manuscritos: o mais antigo fragmento de papiro do Novo Testamento é do Evangelho de João — universalmente considerado um texto mais tardio que o dos demais evangelistas, por sua teologia complexa e por talvez conhecer e usar o Evangelho de Marcos — e tem idade em torno do ano 125. Dificilmente teríamos a sorte de achar “o” primeiro manuscrito. Muito provavelmente é uma cópia de um texto mais antigo, e até uma cópia de uma cópia.

Outro problema, talvez mais importante ainda, vem da evidência interna — de como os textos do Novo Testamento funcionam, digamos. O retrato que eles traçam é de comunidades cristãs ainda incipientes e desorganizadas, bastante próximas do judaísmo, em vários casos. Há pouca ou nenhuma distinção formal de funções dentro das igrejas, a figura do bispo ainda não emergiu (exceto em algumas cartas atribuídas a Paulo as quais, pelo visto, na verdade não são dele) etc. Só que, a partir do começo do século 2º d.C., todo esse quadro já começa a mudar. É natural pensar que algumas décadas teriam sido necessárias para esses desenvolvimentos. O quadro faz muito mais sentido quando se pensa nos textos do Novo Testamento como, em grande medida, produções do século 1º d.C. mesmo. Fim do parêntese.

O apóstolo Paulo escrevendo suas epístolas (ou forjando a existência de Jesus, se você for um teórico da conspiração). Crédito: Reprodução
O apóstolo Paulo escrevendo suas epístolas (ou forjando a existência de Jesus, se você for um teórico da conspiração). Crédito: Reprodução

AS DATAS MAIS ACEITAS

Dito isso, quais são as datas estimadas para as nossas principais fontes cristãs sobre o Jesus histórico dentro do Novo Testamento? Bem, o apóstolo Paulo escreveu do fim dos anos 40 ao fim dos anos 50 do primeiro século. O Evangelho de Marcos provavelmente foi concluído por volta do ano 70. Mateus e Lucas podem ou não ter suas próprias fontes independentes de dados sobre Jesus (são as chamadas tradições M e L), mas é quase certo que usaram uma fonte escrita anteriormente, hoje perdida, o chamado documento Q (abreviação do alemão “Quelle”, ou seja, “fonte”), que continha quase que só falas de Jesus e poderia ser até anterior a Marcos. De qualquer modo, o consenso é que Mateus e Lucas teriam escrito entre os anos 80 e 90. Finalmente, tudo indica que o Evangelho de João é dos anos 90 a 100.

E tem mais, na verdade, se a gente não restringir o olhar apenas aos Evangelhos e às cartas de Paulo. Dica: o “Apocalipse de João” não foi escrito pelo mesmo autor do Evangelho com esse nome só porque eles são xarás. A linguagem e a visão teológica dos dois livros é bem diferente. O mesmo vale para um dos livros mais enigmáticos do Novo Testamento, a Carta aos Hebreus, durante muito tempo atribuída — erroneamente — a Paulo. Também dá para argumentar que ao menos um evangelho apócrifo, o Evangelho de Tomé, também deriva seus dados de uma fonte (oral ou escrita) independente sobre Jesus, talvez tão antiga quanto o “documento perdido” Q. E por aí vai — a maioria desses textos tem as “impressões digitais” de terem surgido em comunidades cristãs em estado ainda primitivo, no contexto das primeiras quatro ou cinco décadas depois da morte de Jesus.

OK, mas esse monte de gente não poderia ter simplesmente copiado suas informações de uma fonte original — Paulo, digamos, que é quase sempre o coitado escolhido pra Cristo (sem trocadilho) quando alguém defende a ideia de um Jesus “mítico”, inventado? Em tese, poderia, mas não é nem de longe o que parece acontecer.

DIVERSIDADE

Isso porque cada uma dessas fontes tem uma perspectiva muito peculiar e seletiva a respeito de Jesus e de sua vida terrena. A começar por Paulo, que fala muito pouco da vida e dos ensinamentos de Jesus — ele sabe que ele era judeu, que era considerado descendente de David, que foi crucificado, que fez uma “última ceia” com seus discípulos, mas não vai muito além disso em suas cartas. Para obter realmente detalhes “biográficos” sobre Jesus e informações mais claras sobre o que ele ensinava, é preciso recorrer aos Evangelhos, que são depositários de tradições que são claramente independentes das de Paulo, apesar de haver pontos de contato entre elas. Da mesma maneira, textos como o Apocalipse ou a Carta aos Hebreus apresentam visões da pessoa do Nazareno que se desenvolveram de modo independente das dos Evangelhos.

Para dar só um exemplo, enquanto Paulo tem esse aparente descaso por detalhes biográficos de Jesus, Marcos começa sua narrativa com Cristo já adulto, enquanto Mateus e Lucas sentem a necessidade de relatar um nascimento divino. Por outro lado, João vê Jesus como divino “desde a eternidade” — curiosamente, uma ideia que, ao menos do ponto de vista embrionário, aparece de forma independente em Paulo.

Essa diversidade é importante porque, se por um lado, ela sepulta a ideia uma teologia cristã única e imutável que surgiu com os apóstolos e perdurou desde então, por outro lado ela indica que gente com as mais variadas tradições culturais e visões de mundo, em vários cantos do Império Romano, passou a interpretar a figura de Jesus a partir de um ponto mais ou menos definido no tempo. O grego meio tosco e com forte influência do aramaico do Apocalipse não é mesma coisa que a linguagem muito mais elegante (e inspirada na versão grega do Antigo Testamento) do Evangelho de Lucas, a qual, por sua vez, é bem distinta da narrativa algo “viajante” e filosófica do Evangelho de João.

Mas como sabemos que cada um desses escritores conservou tradições genuínas sobre Jesus, em vez de simplesmente dar sua interpretação literária ao personagem, tirada da sua própria cabeça? Porque, muitas vezes, eles sentem a necessidade de preservar o que receberam da tradição oral, mesmo que sua própria perspectiva teológica não bata com os detalhes dessa tradição. Um dos grandes exemplos é Lucas, autor tanto do evangelho que leva seu nome quanto dos Atos dos Apóstolos.

Lembre-se de que Lucas retrata a concepção virginal de Maria pelo Espírito Santo, dando a Jesus uma natureza divina desde o nascimento. Mas, ao apresentar a pregação dos apóstolos diante dos judeus logo depois da Ressurreição de Jesus no livro dos Atos dos Apóstolos, Lucas apresenta “fósseis” teológicos que contradizem diretamente essa visão. Por exemplo, nas falas do apóstolo Pedro a respeito de Jesus nesse livro, Cristo é retratado como um homem que realizava milagres por meio do poder de Deus, e diz-se que “Deus glorificou seu servo Jesus” — sem sinal de que Jesus fosse Deus encarnado. Essas incongruências indicam que a tradição, embora maleável, não era um vale-tudo.

Se a figura de Jesus foi forjada por Paulo ou por algum outro líder da primeira geração cristã, fica muito difícil explicar porque, em tão pouco tempo, essa multiplicidade de perspectivas emergiu. O cenário é muito mais coerente com um fenômeno único — a vida do Jesus histórico — que, com o tempo, engendrou uma série de interpretações diferentes.

Ainda falta o epílogo. Até amanhã!

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