Desculpaí, mas Jesus existiu: epílogo
Aviso: este é o último post de uma série sobre a historicidade de Jesus. Para ler os textos anteriores, por favor clique nos links abaixo.
Desculpaí, mas Jesus existiu: um preâmbulo
Desculpaí, mas Jesus existiu: Flávio Josefo
Desculpaí, mas Jesus existiu: fontes pagãs
Desculpaí, mas Jesus existiu: critérios
Desculpaí, mas Jesus existiu: fontes cristãs
É hora de tentar amarrar as pontas soltas, gentil leitor. Após uma análise exaustiva (em mais de um sentido, hehehe…) das fontes antigas a respeito de Jesus e dos critérios usados para tentar determinar a historicidade dos fatos a respeito dele, minha ideia é concluir com o que, de brincadeira, eu costumo chamar de…
A CONSPIRAÇÃO MAIS BURRA DA HISTÓRIA
Estou sendo irônico, claro. O que quero dizer é que, se Jesus fosse mesmo uma figura mítica inventada pelos primeiros cristãos (em geral, o principal suspeito apontado como mentor dessa invenção é o apóstolo Paulo), essa foi a conspiração mais burra da história humana.
Para entender melhor o que isso significa, vamos voltar às fontes cristãs usando os critérios de historicidade que expliquei neste post. O mais importante e universalmente usado é o critério do constrangimento, que expliquei sucintamente da seguinte maneira:
“O critério do constrangimento parte do pressuposto de que, por mais que os antigos cristãos acreditassem em coisas que, para céticos modernos, soam completamente absurdas, como profetas crucificados que voltam à vida, ainda assim eles tinham uma boa noção do que pegava mal e do que pegava bem na sociedade de seu tempo. Em outras palavras: dados sobre a vida e a morte de Jesus que poderiam colocar tanto o Nazareno quanto os seus seguidores numa posição constrangedora, vergonhosa ou embaraçosa e ainda assim eram mantidos nas narrativas dos Evangelhos ou em outra literatura cristã têm uma chance elevada de serem históricos. Esses dados seriam parte tão forte da tradição histórica a respeito do sujeito que seria impossível escamoteá-los.”
Se esse critério é válido, a primeira e mais importante coisa a explicar é porque os “inventores do Jesus mítico” dar-se-iam ao trabalhar de criar um Salvador crucificado. Uma invenção dessas não significa apenas escolher retratar Jesus como alguém que foi submetido ao suplício mais humilhante da Antiguidade, reservado para criminosos de beira de estrada, escravos rebeldes e outros zé-ninguéns. Significa também colocá-lo debaixo de um dos piores estigmas religiosos judaicos: o livro do Deuteronômio, um dos que contêm as leis dadas por Deus a Moisés e ao povo israelita, diz que a pessoa crucificada é “maldito de Deus”. Se a ideia inicial era converter os judeus à crença em Jesus — e todas as nossas fontes indicam isso –, a coisa mais burra do mundo seria inventar uma crucificação que nunca ocorreu.
Por outro lado, olhando a questão pelo ângulo da pregação dirigida por Paulo e por outros líderes cristãos aos pagãos do Império Romano, também parece uma burrice sem tamanho inventar um líder divino judeu. E isso não apenas por causa da distância cultural entre judaísmo e paganismo antigos — afinal, o que o cidadão médio de Corinto ou de Roma sabia sobre as profecias judaicas sobre Abraão ou David? –, mas também porque uma forma embrionária, mas considerável, de antissemitismo, era comum no Mediterrâneo antigo, mesmo antes da guerra entre judeus e romanos que levou à destruição do Templo de Jerusalém no ano 70. Do ponto de vista estratégico, inventar um “deus-homem” judeu é, de novo, uma grande bobeada.
Finalmente, não faz o menor sentido, e parece simplesmente coisa de gente estúpida, inventar do zero um Messias judaico criado em Nazaré da Galileia, com sotaque galileu, cercado de discípulos galileus. O herdeiro do rei David não deveria vir de uma das grandes famílias aristocráticas da Judeia, ou pelo menos ser alguém de um lugar menos tosco e mais apresentável? O absurdo é tão patente que vemos os Evangelhos fazendo todo tipo de malabarismo retórico para lidar com esse fato, desde argumentar que, na verdade, Jesus nasceu em Belém (Mateus e Lucas) até brincar com o preconceito anti-Nazaré, citando-o, e depois dar a entender que o local de nascimento de Cristo era irrelevante (João). De novo, para que inventar uma informação que atrapalha tanto?
UM TIPO DE MESSIAS NUNCA VISTO
A imagem de um Messias crucificado, morto e ressuscitado hoje nos parece inevitável, mas isso é só efeito de 2.000 anos de tradição cristã. Na origem, a ideia era tanto constrangedora — como eu argumentei acima — quanto “descontínua” com o judaísmo do século 1º d.C. (encaixando-se ao menos parcialmente no critério histórico da descontinuidade, segundo o qual um fato sobre Jesus tem mais chances de ser histórico se ele não corroborar o que o judaísmo e/ou os primeiros cristãos defendiam).
Explicando um pouco melhor: havia todo tipo de expectativa divergente sobre o Messias entre os judeus do primeiro século. Alguns esperavam simplesmente um rei humano da linhagem de David que os libertaria da dominação romana e traria a independência política de Israel. Outros esperavam uma figura mais sobrenatural, semidivina, que não apenas seria um grande guerreiro como também instauraria um reino eterno de paz e justiça na Terra, com Jerusalém como “capital do mundo”. Caramba, havia até alguns, como a seita provavelmente responsável por criar os manuscritos do mar Morto, que esperavam DOIS Messias, um Messias rei e outro Messias sacerdote.
O que ninguém esperava, no entanto, era um Messias torturado e crucificado pelos romanos.
Foi preciso muita criatividade teológica — e muita fé em Jesus da parte dos seus primeiros discípulos, claro — para pegar esse fato triste, humilhante e constrangedor e tentar argumentar que era exatamente isso que Deus havia previsto por meio dos profetas nas Escrituras judaicas. Antes da morte de Jesus, não passava pela cabeça de nenhum judeu pegar textos do Antigo Testamento como a descrição do Servo Sofredor no livro de Isaías, ou as passagens sobre o sofrimento do justo nos Salmos, a dizer que aquilo tudo tinha de acontecer com o Messias. Seria uma estupidez descomunal inventar tudo isso se a ideia era só criar uma nova divindade com apelo pop.
PROVAR UMA NEGATIVA?
Quem defende a tese do Jesus mítico costuma dizer que o ônus da prova, ou seja, a obrigação de demonstrar algo, está do lado de quem quer defender que ele existiu, da mesma maneira que é obrigação de quem diz que Deus existe provar que ele existe mesmo. Afinal, dizem eles, não se pode “provar uma negativa”, ou seja, provar que algo não existe — basta lançar dúvidas razoáveis sobre a existência.
Eles que me desculpem, mas nesse caso o raciocínio deles abusa do princípio acima exposto. Afinal, eles também estão tentando provar algo, que é a ideia de que Jesus foi um mito inventado. E, para isso, eles precisam demonstrar como e por que essa invenção foi feita.
Acho justo afirmar que os fatos que expus acima mostram que a tese da invenção mítica é improvável, ainda que não impossível. O princípio da pesquisa histórica, assim como o de qualquer outra ciência, é claro: a hipótese que consegue explicar com mais simplicidade e lógica o conjunto de dados disponíveis vence. Dado tudo o que sabemos, faz muito mais sentido postular que um profeta real saiu de Nazaré, pregou Palestina afora e foi crucificado por volta do ano 30 d.C.
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