Fatos e versões na Bíblia
Era previsível, claro, que o meu post sobre David e Golias rendesse uma polêmica das bravas. Igualmente previsível — ao menos do meu ponto de vista, hehehe — foi a minha falta de tempo para voltar ao tema, já que fiquei atolado num trabalho grande durante as duas semanas que vieram logo depois. Mas antes tarde do que nunca: estou aqui para responder uma das principais objeções dos leitores ao texto original e ir além.
Só relembrando: no post anterior eu havia apontado a contradição, presente nos próprios textos bíblicos, a respeito de quem teria matado o célebre gigante Golias. O Primeiro Livro de Samuel diz que foi David, contando a história famosa da funda e da pedrada que todos conhecemos e amamos. Mas o Segundo Livro de Samuel atribui a morte do gigante a um ilustre desconhecido, o guerreiro Elcanã, filho de Iari, também nascido em Belém, como David.
Muita gente se apressou a apontar, nos comentários ao post, que a própria Bíblia esclarecia perfeitamente essa “aparente contradição”. No Primeiro Livro de Crônicas — que basicamente reconta boa parte do reinado de David, numa nova versão da narrativa dos livros de Samuel — aparece a informação de que Elcanã matou “Lami, irmão de Golias, o giteu [ou de Gat, cidade de origem do gigante]”. Problema resolvido, portanto? Eu sou apenas um incréu enxergando coisas?
Bem, incréu eu não sou — sou católico, mas isso não vem ao caso agora. A questão é entender como os próprios autores bíblicos interpretaram escritores anteriores que também escreveram livros bíblicos — e, nesse ponto, o texto de Crônicas traz pistas preciosas.
Antes de continuar, um parêntese: estou usando como referência para esse discussão duas das traduções mais respeitadas das Escrituras que existem por aí. São elas:
1)Em português, a Bíblia de Jerusalém da editora Paulus, uma tradução ecumênica feita por especialistas brasileiros, tanto católicos quanto protestantes;
2)A Jewish Study Bible, uma tradução para o inglês do Tanakh (Antigo Testamento judaico), feita pela Sociedade Judaica de Publicações americana, com tradutores que são rabinos das mais variadas correntes do judaísmo, dos ortodoxos aos reformados.
OPERAÇÃO BARRA-LIMPA
OK: voltemos a Crônicas. Não dá pra colocar uma data precisa na conclusão do par de livros — os especialistas se dividem a respeito do tema –, mas dá para estimar, ao menos, uma data mínima. Repare que o Segundo Livro das Crônicas termina reproduzindo o decreto de Ciro, rei dos persas, que permitia aos judeus exilados na Babilônia o retorno a Jerusalém e a reconstrução do Templo, destruído pelos babilônios. Acredita-se que esse decreto de Ciro date do ano 538 a.C. Ou seja, uns 500 anos depois da época de David.
Ninguém sabe quando o Primeiro e o Segundo Livro de Samuel foram escritos e compilados (certamente não foi o profeta-título Samuel que os escreveu, já que ele morreu muito antes de David), mas é bastante possível que uma primeira versão desses livros estivesse disponível na época pré-exílica, ou seja, antes da destruição de Jerusalém. Ao menos 50 anos antes de Ciro, portanto, e talvez bem mais tempo, já que a Cidade Santa foi destruída em 587 a.C. Além disso, outras pistas, como a linguagem e a visão de mundo de Crônicas, sugerem uma época bastante tardia para sua composição final – talvez lá pelo ano 400 a.C. ou 300 a.C.
Em outras palavras, é praticamente certo que o(s) autor(es) de Crônicas conheciam os livros de Samuel. Ou seja, temos um autor bíblico que conhecia e lia um outro autor bíblico mais antigo. O que isso significa? Muita coisa.
A mais importante: quando fala dos reinados de David e Salomão, o Cronista (como é conhecido) EDITA SISTEMATICAMENTE as informações que muito provavelmente recebeu dos livros de Samuel (e também dos livros dos Reis). Para ser mais específico, ele faz de tudo para projetar uma imagem mais favorável do rei David e de seu filho e herdeiro, Salomão.
Crônicas, por exemplo, não menciona que David deu um jeito de mandar para a morte um de seus generais, o hitita Urias, só para ocultar o fato de quem tinha engravidado a mulher do militar, Betsabé, enquanto o coitado estava acampado com o Exército israelita. Betsabé, aliás, acabaria dando à luz Salomão (não era esse menino da primeira gravidez; esse acabou morrendo ainda bebê, como castigo divino contra David).
Os dois livros tardios também não mencionam, no caso do reinado de Salomão, nem o fato de ele ter abandonado o Deus único israelita e adorado outros deuses, nem a acirrada briga pelo poder que foi necessária para que ele subisse ao trono.
Em outras palavras: o Cronista faz uma espécie de “operação Ficha Limpa” ao traçar um retrato idealizado dos primeiros reis da dinastia de David.
Voltando ao caso de Golias: sim, em tese, poderíamos estar diante de um erro de copista. Pode ser que “Elcanã” seja só um outro nome de David — reis frequentemente mudavam de nome ao assumir o trono. Mas, diante do viés político e religioso claro de Crônicas, o mais razoável me parece desconfiar.
CONFIAR DESCONFIANDO
Trocando em miúdos: não dá para esquecer motivações políticas e ideológicas, às vezes até aparentemente mesquinhas, quando a gente tenta entender como os textos bíblicos surgiram. É claro que eles têm um inegável aspecto religioso e espiritual, mas a história deles tem muito de humano também.
Lembre-se também do seguinte: entre os judeus da época pré-cristã, ninguém tinha um exemplar encadernado com todos os livros do Antigo Testamento. (Livros encadernados só apareceriam na época romana.) O que havia era ROLOS dos textos sagrados, que até podiam ser cotejados e comparados, mas 1)era muito mais difícil fazer isso e 2)não havia um cânone fechado, ou seja, uma lista de quais livros pertenciam às Escrituras Sagradas e quais não. Ou seja, nem sempre o sujeito podia comparar Samuel, Reis e Crônicas, como estamos fazendo agora.
Fazer contorcionismos de todo tipo para tentar provar que não há dissonâncias e contradições de nenhum tipo numa história tão complexa é o mesmo que dizer que, embora o bicho tenha bico, pés palmados e faça “quack!”, ele só parece um pato. Em resumo: não cola.
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