E o Verbo se fez primata
Aviso aos navegantes: este é um dos raros posts do blog que não adotam a perspectiva tradicional, mais objetiva, de agnosticismo metodológico que caracteriza meus textos. A seguir, falo como crente (cristão, católico), e não apenas como jornalista de ciência. Não digam que eu não avisei e aproveitem para parar de ler agorinha caso essa pegada não lhes agrade 😉
Por razões que a própria razão desconhece, meu último post (sobre a longevidade mitológica dos patriarcas bíblicos) virou um dos textos mais lidos do site desta Folha e provocou uma enxurrada de mensagens na minha caixa de entrada — todas muito civilizadas, graças a Deus. Mas me chamou particularmente a atenção o e-mail do leitor Julio Cesar Paes (obrigado por escrever, Julio!), que dizia o seguinte, em certo trecho:
“Para mim o darwinismo é um absurdo, o ser humano é criado a partir da imagem e semelhança de Deus, e chamar o homem ou a mulher de descendente de ‘macaco’ é uma blasfêmia a Deus. Então Jesus seria um macaco evoluído?”
Longe de mim questionar a fé de alguém e violar o mandamento que me impõe não julgar. Entretanto, ao menos do ponto de vista racional (até onde a gente pode ser racional em questões de fé, claro), não consigo deixar de pensar que quem se escandaliza com o fato (porque, desculpem, É um fato) de que Jesus também foi um macaco, ao menos na sua natureza humana, não entendeu NADA da Encarnação.
Gostaria de chamar Paulo apóstolo em meu socorro. Lembrem-se do que ele diz na Epístola aos Filipenses sobre a vinda de Cristo a este mundo:
“Ele, estando na forma de Deus
Não usou de seu direito de ser tratado como um deus
Mas se despojou,
Tomando a forma de escravo.
Tornando-se semelhante aos homens
E reconhecido em seu aspecto como um homem
Abaixou-se,
Tornando-se obediente até a morte,
À morte sobre uma cruz.
Por isso Deus soberanamente o elevou
E lhe conferiu o nome que está acima de todo nome”
Eu não consigo entender por que raios é mais indigno pensar em Jesus como, em sua natureza física, alguém muito próximo de um chimpanzé ou bonobo, do que considerar que ele foi um bebê que se sujava constantemente de cocô e xixi, que regurgitava leite materno, que ralava os joelhos quando começou a aprender a andar, que provavelmente levou tapas no bumbum (ou coisa pior) quando fez travessuras. Eu já tive a alegria de brincar com um bebê chimpanzé (e gostaria que todo mundo tivesse a mesma graça algum dia, porque é uma experiência espiritual, capaz de mudar a vida do sujeito). E sou capaz de atestar que eles se comportam EXATAMENTE do mesmo jeito que um bebê humano, incluindo pequenos tiques e brincadeiras. Por que imaginar o menino Jesus é fofinho e imaginar a semelhança do menino Jesus com um menino primata (ou melhor, primata não humano) é nojento? Desculpa, não faz o menor sentido.
Paulo não usou a expressão “em forma de escravo” à toa. No mundo greco-romano, escravos muitas vezes eram vistos como coisas ou animais, inferiores por natureza, menos do que gente “de verdade”. Esse é o ponto central da ideia da Encarnação, essa revolução doida no pensamento religioso da Antiguidade que responde por pelo menos 50% da beleza do cristianismo: Deus não se identifica com o poder e com a glória, mas com a pequenez, com o sofrimento, com a vulnerabilidade. Os teólogos, usando uma palavra derivada do texto de Paulo aí em cima, chamam isso de “kenosis” — o “esvaziamento” misericordioso de Deus para entrar no mundo e na história.
É corajoso. É humilde. É heroico — e, aos olhos de quem só se preocupa com posição e poder, parece completamente maluco. Ou seja, é EXATAMENTE o que a gente deveria esperar de alguém como Jesus, daquele que diz “Eis que eu faço novas todas as coisas”. TODAS as coisas — a Criação inteira, aquele que “geme com as dores do parto”, assim como nós. Que maneira melhor de conseguir esse objetivo do que inserindo o “DNA divino” na saga gloriosa da história da vida, num de seus ramos mais chãos? A radiância e a misericórdia da Encarnação ficam MAIORES, não menores, quando a gente pensa que Deus se fez não apenas homem, mas primata — e mamífero, e vertebrado, e animal.
Portanto, o que Deus quis que fosse puro — nossa relação indelével com as outras formas de vida –, não ouse o homem chamar de impuro.
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