Histórias de Natal, parte 4: a política da manjedoura
Aviso aos navegantes: este é o quarto e último post de nossa série sobre aspectos históricos das narrativas bíblicas sobre o Natal. Para ler os posts anteriores, basta clicar nos links abaixo:
Como tenho tentado explicar nos últimos dias, é importante pensar nos chamados Evangelhos da Infância, os textos sobre o nascimento e os primeiros anos da vida de Jesus escritos pelos evangelistas Mateus e Lucas, como algo mais do que um simples relato factual do que aconteceu em Nazaré, Belém e Jerusalém no “ano 1” — até porque, do ponto de vista factual, esses textos estão longe de contar a mesma história. Levando em conta a mentalidade e o contexto cultural da época, é mais lógico e produtivo pensar no que os evangelistas estão tentando dizer quando montam suas narrativas de determinada maneira.
Os Evangelhos da Infância, em outras palavras, mais do que uma transcrição dos vídeos que José e Maria fizeram da gravidez e do nascimento do menino (vídeos inexistentes, claro), são introduções ao que os evangelistas querem dizer com a história geral de Jesus. São o primeiro esboço da resposta às perguntas: quem é Jesus? E o que a vinda dele ao mundo significa? É desse ponto de vista que não é nem de longe inexato dizer que essas narrativas também têm forte conteúdo político.
É assim que muitos historiadores têm lido os Evangelhos da Infância, em especial os primeiros capítulos do Evangelho de Lucas. Um bom detalhamento dessa posição está no livro “O Primeiro Natal”, de Marcus Borg e John Dominic Crossan. Eles e outros pesquisadores enxergam uma série de paralelos intrigantes entre o relato de Lucas e a chamada teologia imperial romana — essa, basicamente, é o sistema ideológico usado por Roma para justificar sua dominação de boa parte do mundo antigo.
AUGUSTA PROPAGANDA
Sabemos que, nas décadas imediatamente anteriores ao nascimento de Jesus, vários anos de guerra civil entre os principais políticos romanos chegaram ao fim com a ascensão ao poder de Augusto, o primeiro imperador, que reinou de 27 a.C. a 14 d.C. Augusto não perdeu tempo do ponto de vista ideológico, fortalecendo a ideia de que seu pai adotivo e tio-avô, Júlio César, teria se tornado um deus (tornando-se, por tabela, filho de um deus, claro) e dando impulso a um culto de si próprio com honras divinas.
Textos espalhados por boa parte das províncias romanas, em especial na Ásia Menor (atual Turquia), passaram a louvar Augusto como o governante de origem divina que trouxe paz ao mundo. Logo surgiram histórias de que Augusto não era filho de um ser humano, mas do próprio deus Apolo, que teria fecundado a mãe dela na forma de uma serpente. E adivinhe o verbo grego usado pela propaganda oficial do império para exaltar os feitos de Augusto? O mesmo verbo que deu origem ao nosso “evangelizar” — ou seja, a “boa nova” de Augusto e de seus sucessores, todos os quais seguiram o exemplo de se autodivinizar.
É claro que boa parte disso era conversa pra boi dormir. Sim, de fato, o domínio com mãos de ferro de Augusto acabou com as guerras civis que mobilizaram o Mediterrâneo, mas a “pax romana” do novo imperador foi forjada para beneficiar apenas as elites do Império. Com a centralização política cada vez maior e a ânsia imperial por monumentos cada vez mais magníficos, quem pagava a conta dessa paz eram as grandes massas de camponeses do Império, obviamente sem os privilégios da cidadania romana — sem falar, é claro, dos inúmeros escravos.
E, é claro, na terra de Israel, a população judaica tinha perdido sua independência política, sendo governada por Herodes, um rei fantoche dos romanos, sanguinário e viciado em obras faraônicas. Ainda não havia a pressão para que os judeus se juntassem ao culto pagão do imperador. Mas, nas gerações seguintes ao nascimento de Jesus, com a revolta judaica contra Roma (no ano 66 d.C.) e a entrada cada vez maior de gentios (não judeus) no movimento religioso iniciado por ele, esse tipo de pressão em favor da idolatria ao imperador logo surgiria, fazendo mártires.
É nesse contexto que as escolhas narrativas e de linguagem que Lucas e Mateus fazem precisam ser entendidas. É muito plausível que seu significado seja o de uma forma de resistência pacífica, mas determinada, ao “projeto de mundo” da “Pax Romana”, propondo um projeto alternativo: o de Jesus. Nas palavras de Borg e Crossan:
“As histórias do primeiro Natal são, em geral, anti-imperiais. Em nosso contexto, isso significa afirmar, seguindo as histórias da natividade, que Jesus é o Filho de Deus (e o imperador não é), que Jesus é o Salvador do mundo (e o imperador não é), que Jesus é o Senhor (e o imperador não é), que Jesus é o caminho para a paz (e o imperador não é)”.
De fato, são esses os termos usados em grego pela teologia imperial romana para falar de Augusto: filho de Deus, Senhor, Salvador do mundo, portador da boa nova (“evangelho”). Só que essas palavras, em Lucas, são colocadas na boca dos humildes e dos oprimidos: a jovem Maria, sua parenta Isabel (desprezada por ter chegado aparentemente estéril à velhice antes de engravidar e ser mãe de João Batista), os pastores de Belém.
Para terminar, e deixando de lado a objetividade jornalística para falar como cristão: é essa visão, revolucionária no bom sentido, que está no centro da saga de Jesus e do Deus que ele pregou, e é graças a ela que o Natal continua sendo um símbolo tão poderoso do que é divino. Que todos, portanto, tenham um Natal maravilhoso. Até breve!